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Murilo Mendes
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Poeta experimental, de cultura, cosmopolita, viajante, brasileiro em Roma. Assim poderíamos abrir algumas portas ou tags, se pensarmos em nossa linguagem atual, ao poliédrico universo literário do escritor Murilo Mendes. As “mil salas paralelas” (Mendes, 1994) deste universo nos convidam ao passeio por uma obra tão singular como instigante. Murilo Mendes nasce em 1901, em sua Juiz de Fora “cercada de pianos por todos os lados” (Mendes, 1994) no estado sem mar de Minas Gerais. Como outros escritores mineiros de sua geração, vai das montanhas para o Rio de Janeiro e é lá que estreia sua vida literária com o livro Poemas (1930), considerado por Mário de Andrade “historicamente o mais importante dos livros do ano” (1987).
Também é no Rio de Janeiro que conhece Ismael Nery, múltiplo artista, poeta, pintor, arquiteto e amigo, no mais forte sentido do termo, com o qual Murilo compartilha e aprende a experiência dos lindes, do transbordamento da personalidade que assume a "infinidade de potências descontínuas do mundo - não tenho temperamento, ou por outro, tenho vários temperamentos. Acordo padre, amanheço moleque" (Mendes, 1994). Desta instabilidade do sujeito, nasce uma poética que incessantemente se destrói e encontra, no sacrifício da unidade do eu e de uma identidade estável, o motor da metamorfose e de seu dinamismo particular.
A extensão de sua obra é notável e chega até os anos setenta em um percurso que não perde o fôlego e procura estar a par de seu tempo, sempre com a liberdade de quem não cumpre programas ou cartilhas. Sua poética se sustenta em um visionarismo que pilota uma máquina textual sem amarras, fazendo de muitos de seus livros coletâneas heterogêneas de textos e de suas imagens um tanto quanto imprevisíveis, como a da divertida girafa que “responde que sim as nossas perguntas, mesmo as absurdas” (Mendes, 1994). O visionarismo encarnado na girafa aponta no horizonte de nossa literatura a possibilidade de um novo paradigma, a do real expandido em suas várias possibilidades e a do exercício pleno do imaginário sem a submissão à lógica racional ou qualquer convenção: “Somente os visionários-realistas (ou realistas-visionários) conseguem vê-la. De resto, mesmo depois de cumprida a visita regulamentar regressam à casa convencidos” (Mendes, 1994).
Já nos livros “Poemas” (1930), “A Poesia em Pânico" (1938), “As Metamorfoses” (1944), “Os Quatro Elementos” (1945) e “Mundo Enigma” (1945) se revela o “olho armado” do escritor, sua linguagem intensamente visual: “O olho dispara a câmera lenta, a câmera veloz” (Mendes, 1994), escandindo na escrita, deste modo, diferentes velocidades do olhar e diferentes rítmicas na leitura. A união de elementos distantes, dos mais triviais do cotidiano e os do irreal, e uma escrita fragmentária e descontínua, tão próprias da estética da colagem de raiz surrealista, criam uma malha textual feita para a desorientação de nossas percepções usuais de tempo e de espaço e para a surpresa própria do estranhamento que nos causam as combinações imprevistas. Esta percepção, que traz à escrita o olhar como câmera, estabelece uma rítmica apoiada no silêncio, que o branco da página muitas vezes indica, ou a câmera veloz, a sucessão fragmentária do texto, algo como a dinâmica do disparo. Murilo enerva com “reservas de eletricidade” (Mendes, 1994) sua voz na literatura brasileira.
Esquivando-se dos manifestos e dos programas, na defesa de um suposto "surrealismo à moda brasileira", o escritor ativa na voltagem da sua criação e escrita leituras marginais para o contexto da época. Tal marginalidade levaria a crítica de primeiro momento a entender sua voz como “solitária e insólita” (Merquior, 1994) e seu modernismo, desarticulado, como se com estes contornos se desenhasse mesmo a figura de uma ilha distante da literatura brasileira. Entretanto, mais tarde, o escritor seria considerado um dos escritores mais fundamentais do movimento.
Para além dessas considerações, o escritor se autodescreve como um "franco-atirador", preservando sua distância tanto em relação ao modernismo como em relação ao surrealismo. Mesmo assim, com a liberdade que rege suas escolhas estéticas, ler Murilo Mendes é inevitavelmente ler outras bibliotecas, postas em funcionamento em sua “bagunça transcendente” (Mendes, 1994). Sua produção poética convoca intensamente outras produções artísticas, sejam elas literárias, plásticas ou musicais, fazendo da literatura um espaço de crítica e criação em aliança indissolúvel. O poeta se debruça em espaços e diálogos artísticos e os traz para dentro da escrita, em uma ânsia sustentada e dedicada por conhecer outras culturas e por criar em diálogo com outras criações, sempre em direção a alguma parte desconhecida, reconhecida reversivelmente dentro e fora de si: “Meu corpo é um estrangeiro/ A quem levo pão e água diariamente” (Mendes, 1994).
Neste sentido, Murilo Mendes dedica vários textos a outros artistas, como lemos nas séries de murilogramas que se encontram em Convergência (1963-1966) ou nos livros por ele designados como “miscelânea”, como Conversa Portátil (1971-1974), Poliedro (1966) e Retratos-Relâmpagos (1973-1974), ou ainda nos textos sobre espaços geográfico-literários, como na Minas Gerais barroca de Contemplação de Ouro Preto (1954), em Siciliana (1954-1955), Carta Geográfica (1965-1967), no Portugal de Janelas Verdes (1970), na Espanha de Tempo Espanhol (1955-1958), Espaço Espanhol (1966-1969) e mesmo na Juiz de Fora presente no livro de memórias A idade do Serrote (1968).
De outras amizades, surgiriam as parcerias literárias como nos livros com o poeta alagoano Jorge de Lima em Tempo e Eternidade (1935) e no livro de colagens A pintura em Pânico (1943) e Janela do Caos (1949) que conta com as litografias do pintor francês Francis Picabia. Esse convívio com outros artistas não se dá somente na dimensão criativa, profundamente afeito à amizade, Murilo Mendes cria uma rede de trocas intelectuais fecunda para nossa história literária. Desde sua primeira viagem à Europa, em 1952, inicia amizade com vários artistas como André Breton, René Char, Camus, Magritte e De Chirico. Em 1957, o escritor se fixa em Roma contratado pelo Departamento Cultural do Itamaraty como professor de cultura brasileira em Roma e em Pisa. Durante estes anos, fruto de sua ligação com as artes e suas amizades, Murilo adquire e recebe importantes obras de arte que se encontram atualmente no Museu de Arte Murilo Mendes e constituem a maior coleção de arte moderna do estado de Minas Gerais.
Para Luciana Stegagno Picchio, depois da chegada do escritor na Europa, em 1957, “a informação sobre o Brasil filtrou-se, nesses anos, através do canal Murilo Mendes com a recusa implícita ao clichê tropicalista imposto a nível panfolclórico de mass media (...)” (1997). O escritor ainda escreve livros em outras línguas, publicados postumamente, como Papiers (1931-1974), em francês, e Ipotesi (1968), em italiano. Antenado no que acontece no mundo, Murilo sai física e artisticamente do Brasil, internacionalizando, segundo a estudiosa italiana, outro Brasil a outras terras. Ainda que seu trabalho literário não responda aos interesses de cunho nacionalista mais imediatos, o escritor sempre leva o Paraibuna, rio de sua cidade natal, como saudação a outros, tal como diria o poeta João Cabral de Melo Neto em “Murilo Mendes e os rios”.
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Referências
ANDRADE, Mário de. “A poesia de 1930”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1978.
CABRAL DE MELO NETO, João. “Murilo Mendes e os Rios”. In: Poesia Completa e Prosa. Organização e preparação do texto: Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Organização e preparação do texto: Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MERQUIOR, José Guilherme. “Notas para uma Muriloscopia”. In: MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Organização e preparação do texto: Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
STEGNANO PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997.
Textos traduzidos
BISHOP, E.; BRASIL, E. (org.). An anthology of twentieth-century Brazilian poetry. Middletown: Wesleyan University, 1972.
MENDES, Murilo. Office Humain. Traductions di Dominique Braga et Saudade Cortesão. Paris: Pierre Seghers, 1957.
MENDES, Murilo. L`Occhio del Poeta. (A cura di Luciana Stegagno Picchio). Roma: Gangemi Editori, 2001.
MENDES, Murilo. La virgen imprudente y otros poemas. Traducción de Rodolfo Alonso. Estudio y notas de Santiago Kovadloff. Madrid: Talleres Gráficos Lamadrid, 1978.
MENDES, Murilo. La poesía sopla donde quiere. Traducción de Rodolfo Alonso. Córdoba: Alción Editora, 2012.
MENDES, Murilo. Metamorfozele. Trad. Si prefata de Marian Papahagi. Bucuresti: Ed. Univers, 1982.
Autor/a do verbete
Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessoa. Ilustração: Rodrigo Rosa.