Documentos
Metadados
Miniatura
Título
Capitu
Verbete
Embora o livro não tenha seu nome, Capitolina Pádua, mais conhecida como Capitu, é a verdadeira protagonista de Dom Casmurro, um dos romances mais famosos de Joaquim Machado de Assis (1839-1908). Desde sua publicação em 1899, a história de Capitu tem despertado leitores e críticos literários em todo o mundo. Ele também inspirou um filme e uma recente minissérie para a televisão, que, ao contrário do romance de Machado, leva seu nome no título. Mas que segredo esconde Capitu para causar tamanha intriga? O que fez? A resposta curta é: não sabemos. E nunca saberemos, mas vamos fazer a pergunta mais uma vez.
Dom Casmurro narra na primeira pessoa a vida de Bento Santiago, um homem que decide escrever suas memórias. Seus vizinhos o apelidaram de “Dom Casmurro” por seu mau humor e ares de superioridade, e sozinho e sem amigos, ele tem tempo para se dedicar à memória de Capitu, a mulher por quem se apaixonou, com quem se casou e teve um filho. Mas Bento começa sua história bem antes, um dia de 1857, no centro do Rio de Janeiro, quando ele e Capitu ainda eram crianças. Nesse dia, Bento tem uma revelação: “Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim?” (1899, p. 34). E assim, sem mais delongas, ele mergulha (e mergulha seus leitores) na obsessão que o acompanhará até seus últimos anos.
Capitu é alta, forte e cheia; é morena, com olhos claros e grandes. Suas mãos, “despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor” (1899, p. 39). O detalhe é importante: as mãos de Capitu mostram que ela e Bento não pertencem à mesma classe social. A mãe de Bento tem escravos, propriedades e investimentos; a família de Capitu, não. O mais importante de Capitu, porém, o que intriga Bento (assim como seus leitores e admiradores mais atentos), são seus “olhos de ressaca”: “Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que o arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”, diz Bento (1899). No entanto, o agregado da família Santiago os descreve de forma menos poética: “São assim de cigana oblíqua e dissimulada” (1899).
Desde o início do romance, uma sombra de suspeita e mistério recai sobre Capitu. Sua curiosidade sem limites também é motivo de dúvida sob o olhar masculino. Depois de ter aprendido a ler, escrever e contar, francês e doutrina, Capitu até queria estudar latim, mas o Padre da escola “acabou dizendo que latim não era língua de meninas” (1899). Capitu é uma mulher pobre encerrada na história de um homem que, embora tenha perdido grande parte de sua riqueza, não renuncia ao controle de suas memórias, como o amante possessivo que foi na juventude. De fato, o amor adolescente de Bento e Capitu não supera o teste de ciúme. Vários anos depois de se casar, mesmo depois de ter um filho, Bento começa a suspeitar que Capitu o traiu com seu melhor amigo, e que o filho não é seu. A família viaja para a Suíça, onde Bento obriga Capitu e o menino a ficarem. Ele retorna ao Rio de Janeiro, sozinho, e assim permanece pelo resto da vida.
Talvez agora o leitor se pergunte qual é a prova do engano. A mesma pergunta foi feita, aquando da publicação do livro, pelo escritor José Veríssimo (1857-1916), amigo de Machado de Assis. “Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito. Ele procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo de todo”, escreveu no Jornal do Comércio (1900). Machado lhe agradeceu em uma carta: “Obrigado pela Capitu, Bento e o resto” (2011). Ao colocar Capitu à frente de Bento, Machado quis dizer ao amigo que tinha razão em suspeitar do narrador? Não sabemos. A verdade é que a maioria dos leitores continuou a suspeitar de Capitu e de seus olhos misteriosos. Veja, por exemplo, o seguinte comentário do crítico Alfredo Pujol, em 1917: “Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer instintiva e talvez inconsciente” (Schwarz, 1994).
Demorou muito para alguém resgatar Capitu da memória de Bento. Em 1960, a crítica americana Helen Caldwell (1904-1987), que traduziu pela primeira vez Dom Casmurro para o inglês, publicou o livro The Brazilian Othello of Machado de Assis. Sua hipótese era que Bento, como o famoso personagem de Shakespeare, era um ciumento patológico, e nenhum leitor sensato deveria confiar em seu relato. “A ironia”, concluiu Caldwell, “não é que ele foi enganado por Capitu, mas que foi enganado por si mesmo” (1960). O crime de Capitu era querer mais do que merecia uma mulher de sua classe, sendo muito curiosa, mais inteligente e astuta que o marido, e sem dúvida mais independente. Segundo o crítico Roberto Schwarz (1932-), a perspectiva estrangeira de Caldwell, mais próxima do mundo imaginário de Shakespeare do que do Brasil de Bento, permitiu-lhe “virar do avesso a leitura corrente de Dom Casmurro, tributária até então dos pressupostos masculinos da sociedade patriarcal brasileira” (2006). Seguindo seus passos, em The Deceptive Realism of Machado de Assis, o crítico inglês John Gledson (1945-) considerou que o ciúme de Bento deve ser lido como um sintoma da crise da classe dominante no Brasil no fim do século XIX. Nesse sentido, o historiador Sidney Chalhoub (1957-) diz que, se houve uma decepção de Capitu com Bento, foi uma traição de classe. Ao prestar atenção nos olhos de Capitu, os críticos se esqueceram de olhar para suas mãos.
Então, o que Capitu fez? Nada e tudo. O enigma permanece e seu significado ultrapassa as fronteiras nacionais do Brasil. Tem a ver com questões universais sobre o desejo, sobre como a incerteza e a ambigüidade podem nos obcecar e até nos levar à loucura, sobre a vontade de dominação masculina e as vítimas que essa vontade leva. Diante do enigma de Capitu, só resta capitular, como canta Luiz Tatit (1951-) na canção que dedica a ela: “Um método de agir que é tão astuto / Com jeitinho tudo, tudo, tudo / É apenas render-se, e não resistir, e capitular”.
Temas
Personagens
Referências
CALDWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis: A Study of Dom Casmurro. Berkeley: University of California Press, 1960.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GLEDSON, John. The Deceptive Realism of Machado de Assis: A Dissenting Interpretation of Dom Casmurro. Liverpool: Francis Cairns, 1984.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Dom Casmurro. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1899.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Correspondência. Tomo III (1890-1900). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011. Edited by Irene Moutinho and Sílvia Eleutério.
SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: PIZARRO, Ana (organizadora). América Latina: Palavra, Literatura, e Cultura. São Paulo: UNICAMP, 1994.
SCHWARZ, Roberto. ”Leituras em competição”. Novos estudos CEBRAP. 2006, n.75, pp. 61-79
VERÍSSIMO, José. “Novo livro do Sr. Machado de Assis”. Jornal do Comércio. 19 de março de 1900.
Textos traduzidos
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. New York: MacMillan, 1991.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Dom Casmurro. Tradução de John Gledson. New York: Oxford University Press, 1997.
MACHADO DE ASSIS, Joaquin. Don Casmurro. Tradução de Pablo del Barco. Madrid: Cátedra, 1991.
SCHWARZ, Roberto. A Master on the Periphery of Capitalism. Durham: Duke University Press, 1990.
Autor/a do verbete
Lucas Mertehikian. Ilustração: Rodrigo Rosa.