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Literatura fantástica brasileira
Verbete
O Brasil, assim como diversas nações do mundo, tem uma tradição própria de contos folclóricos, lendas misteriosas, superstições religiosas e cancioneiros místicos. Essas manifestações de origem popular são um produto único das diferentes culturas que formaram a nação. Ao longo do tempo, criou-se um campo de trocas entre a mitologia indígena, a matriz africana e a cultura europeia, constituindo um imaginário coletivo que foi propagado entre os brasileiros na forma de “causos” sertanejos e caboclos, contados à noite nas varandas e nos terreiros, à luz do lampião ou da Lua. Em Antologia do folclore brasileiro (1944), ainda um dos melhores levantamentos históricos sobre o assunto, Luís da Câmara Cascudo mapeia na cultura nacional as inúmeras referências a mistérios envolvendo vida e morte, confrontos entre o bem e o mal e a interferência do sobrenatural no mundo natural. Tais narrativas recebem aqui a denominação fantástico, todavia, o elemento incognoscível que as caracteriza também já foi chamado de mágico, maravilhoso, gótico, misterioso, insólito (o dilema da classificação em gêneros).
Apesar dessa herança folclórica tão fecunda, na qual elementos fantásticos desempenham um papel central, a historiografia nacional tende a favorecer obras literárias que privilegiam as descrições das realidades da vida em detrimento dos voos da imaginação. Em parte, pelo fato de ter sido colônia, os textos que são considerados exemplares da cultura brasileira consistem em obras que, na maior parte das vezes, tendem a enfatizar questões político-sociais e/ou promover uma vida cultural mais pujante. Por conseguinte, criaram-se pré-julgamentos sobre as narrativas fantásticas, as quais ficaram associadas às manifestações populares, arcaicas e rurais.
As aspirações críticas surgidas a partir do final do século XIX (Sílvio Romero, Araripe Júnior, José Veríssimo), ligadas à classe média alta e em diálogo com a cultura erudita, buscaram dotar o país de um conjunto de textos dignos de apreciação artística. Tal projeto de construção da cultura literária resultou em influentes debates teóricos e estéticos, mas também criou restrições no escopo de investigação, principalmente no que diz respeito ao estudo do fantástico no Brasil. No século XX, uma nova geração de influentes estudiosos (Afrânio Coutinho, Brito Broca, Antonio Candido, Alfredo Bosi) seguiu na esteira dos críticos e historiadores do século anterior, dando prosseguimento a uma historiografia literária que relegou o fantástico à condição de subliteratura.
O discurso institucional moldado por esse pensamento influenciou a forma como a literatura era estudada e até mesmo produzida, de modo que tornou-se quase um lugar-comum afirmar que as narrativas fantásticas são raras no Brasil. Isso acontece pois se costuma avaliar pelo prisma da literatura europeia, cujo imaginário fabuloso provém do período medieval, tendo se transformado em gênero no século XVIII. Logo, não é que a literatura brasileira seja pouco dada às abstrações, trata-se de uma questão de perspectiva crítica, ou seja, de como o cânone nacional foi organizado. Mais recentemente, diversos grupos de pesquisadores têm trabalhado para preencher essa lacuna na historiografia da literatura brasileira.
Em “O Uraguai” (1769), poema épico de Basílio da Gama, o fantástico se manifesta na paisagem de morte que abre os versos, onde corvos bicam cadáveres de guerreiros indígenas. Aparições fantasmagóricas, sonhos divinatórios e misticismo são outros elementos que possibilitam uma leitura fantástica do poema. Inspirado em lendas indígenas, o poema “Os três dias de um noivado” (1844), de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, representa o encontro do personagem Corimbaba com entidades sobrenaturais em cima de um rochedo encantado. A peça teatral Macário (1852) e sua sequência, a narrativa em moldura, Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, são amplamente reconhecidos como representantes da imaginação fantástica de um autor brasileiro, ainda que se costume apontar que não houve uma aclimatação ao contexto tropical. O poema narrativo “A nebulosa” (1857), de Joaquim Manuel de Macedo, parte de sincretismos mitológicos para contar a história do Trovador, que se isola do mundo na rocha negra onde, sob a força das intempéries tropicais, encara seus destino - a fatalidade relacionada às águas de rios, mares e lagoas estão presentes em diversas obras da literatura brasileira. Em Úrsula (1859), Maria Firmina dos Reis tematiza a condição de ser negro no Brasil, sendo ela mesmo afrodescendente. Atos de vilania e ambientações fantásticas são recursos usados para demonstrar como o discurso fantástico também pode ecoar questões sociopolíticas.
No início século XX, o romance Esfinge (1908), de Coelho Neto; as coletâneas Contos Gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto; Urupês (1918), de Monteiro Lobato; O monstro e outros contos (1932), de Humberto Campos; e o conto “O espelho” (1938), de Gastão Cruls, são exemplos de obras que fazem uso de mitos nacionais e de fatos extraordinários, nos quais o fantástico emerge para se contrapor ao processo de modernização no país. Murilo Rubião (O ex-mágico, 1947; Os dragões e outros contos, 1965; e O pirotécnico Zacarias, 1974) e José J. Veiga contos (Os cavalinhos de Platiplanto, 1959; e A estranha máquina extraviada, 1968) são dois dos principais nomes da literatura fantástica brasileira no século XX. Em seus contos, o fantástico surge nas situações corriqueiras, transfigurando a realidade e provocando incertezas existenciais que desassossegam protagonistas e leitores. Érico Verissimo (Incidente em Antares, 1971), Lygia Fagundes Telles (Mistérios, 1981) e Ignácio Loyola Brandão (Não verás país nenhum, 1981), exploram o inusitado em eventos cotidianos. Em seus procedimentos linguísticos há frequentes alusões à violência do regime militar, constituindo exemplos de como a ficção fantástica pode reverberar o real sem renunciar à imaginação, sua característica mais marcante.
No século XXI, graças às facilidades tecnológicas e às plataformas de autopublicação, houve um crescimento exponencial da literatura fantástica no Brasil, todavia, muitos desses novos autores desenvolvem suas narrativas no contexto de um fantástico internacionalmente reconhecível. André Vianco, Renata Ventura e Maurício de Oliveira são exemplos de escritores que têm apostado em usar o Brasil como pano de fundo das suas histórias.
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Movimentos e Tendências
Referências
BATALHA, Maria Cristina. O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Rio de Janeiro: Caetés, 2011.
MATANGRANI, Bruno A.; TAVARES, Enéias; FELIPPE, Karl. Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo. Curitiba: Arte & Letra, 2020.
Textos traduzidos
GINWAY, Elizabeth. “Machado’s Tales of the Fantastic: Allegory and the Macabre.” In: LAMONTE, A.; SILVA. D.F. Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave McMillan, 2016. p. 211-222.
GOLDBERG, Isaac. Brazilian Literature. New York: Alfred A. Knopf, 1922. Disponível em https://www.gutenberg.org/files/49605/49605-h/49605-h.htm. Acesso 5 abril 2021.
Autor/a do verbete
Daniel Serravalle de Sá. Ilustração: Rodrigo Rosa.