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Macabéa
Verbete
Macabéa é a protagonista de A hora da estrela (1997), último romance da escritora Clarice Lispector. A personagem é datilógrafa e vive na cidade do Rio de Janeiro, onde se depara com situações de desajuste frente às relações sociais, em virtude de sua educação e de sua condição social como migrante nordestina. A jovem é fruto da criação do narrador do romance, o escritor Rodrigo S.M. Na parte inicial do enredo, o narrador-criador, que se autodeclara também como personagem, procura apresentar a si mesmo e a sua relação com a escrita, avançando e recuando na exposição de sua criação – a mulher facilmente substituível, em alusão à caracterização por ele feita. A protagonista, que demora a ser efetivamente introduzida na narrativa, entre avanços e recuos descritivos do narrador, representa a classe social minorizada do migrante nordestino, ou, nomeadamente, da mulher nordestina: “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam” (Lispector, 2017).
A condição social de Macabéa é um dos resultados do intenso processo migratório interno de brasileiros caracterizado pelo rápido crescimento da economia do país na segunda metade do século XX. Nesse cenário, a personagem figura como um experimento de Rodrigo S.M., uma ilustração incômoda – em remissão ao sentimento do narrador para com sua criatura – delineada paulatinamente no romance para expressar a invisibilidade e o silenciamento do nordestino em cidades cuja urbanização era recrudescente. Descrita como alguém “[...] tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham” (Lispector, 2017), a jovem representa a mulher nordestina colocada à margem, minorizada por aqueles que a cercam em decorrência de sua origem, de sua condição biológica e social e de características comportamentais que refletem ainda mais o seu emudecimento na narrativa.
Em sua última entrevista, concedida, em 1977, ao jornalista Júlio Lerner, do Programa Panorama da TV Cultura, Clarice Lispector descreve o romance como "[...] a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. A história não é isso só, não. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima”, descortinando as características que, comparativamente às informações fornecidas pelo narrador do romance, depreende-se fazerem parte do percurso da jovem de sua infância à vida adulta. Nesse contexto, a personagem perdera os pais aos dois anos de idade, tendo sido criada pela tia, que a subordina a uma educação inflexível e resignatória: "Do contato com a tia ficara-lhe a cabeça baixa" (Lispector, 2017). As duas mudam-se para o Rio de Janeiro, onde Macabéa continua a morar após o falecimento da tia. Os ecos desta relação opressiva se manifestam em seu cotidiano na capital carioca e ganham maior amplitude quando a jovem passa a consubstanciar os efeitos da marginalidade à qual é submetida enquanto nordestina. A protagonista do romance de Clarice Lispector, de caráter inofensivo, tem na inaptidão para enfrentar os problemas inerentes à vida, nomeadamente para lidar com a possibilidade de ser enganada, o principal desdobramento de sua criação punitiva e de sua condição social. Essa dinâmica é aparente em diferentes partes do romance, como quando, com brutalidade e requintes de humilhação, seu chefe a ameaça de demissão, no episódio em que se vê traída pelos personagens que a cercam, como é o caso de seu namorado, Olímpico de Jesus, e de sua colega de trabalho, Glória, que terminam por enganá-la para ficarem juntos, ou, ainda, nas páginas finais do romance, nas quais Macabéa é dissuadida pelas falsas premonições de uma cartomante.
Na mesma entrevista para a TV Cultura, Clarice expressa que sua intenção ao escrever a obra em questão não é a de resolver o problema social que aflige a sua protagonista: “Eu escrevo sem esperança em que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada” (Lispector, 2017). Para a autora, o ato de escrever literatura é um desabrochar, como ela mesma o caracteriza, e o seu último romance, assim, reflete parte de sua experiência e reflexões pessoais, tendo Clarice vivido no Recife, onde pudera perceber, pela primeira vez, a figura do nordestino, e no Rio de Janeiro, onde desde a juventude vivera e pudera, já como escritora, perceber o distanciamento social do nordestino: “Eu morei em Recife, eu morei no Nordeste, eu me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro, tem uma fila de nordestinos no campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá e peguei o ar do… meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro” (Lispector, 2017). Não por acaso, essa mesma percepção é retomada por Rodrigo S.M. em A hora da estrela ao descrever a passividade de Macabéa.
O título A hora da estrela faz alusão ao desfecho do romance, no qual Macabéa exerce, pela primeira vez, uma posição central em sua vida. A sentença que intitula a obra é uma contraposição da jovem nordestina em relação aos demais personagens, que lhe usurpam o protagonismo sobre a própria vida, na medida em que se aproveitam de sua incapacidade em reagir às adversidades do cotidiano e às injustiças cometidas contra ela. A matéria narrada por Rodrigo S.M., da trajetória que antecipa a morte da protagonista, serve como preparação à compreensão do leitor a respeito do momento final da personagem, das falsas promessas da cartomante, que inflam o imaginário de Macabéa de esperança, ao protagonismo que exerce quando de seus últimos instantes de vida, decorrente de um atropelamento ocorrido segundos depois das promessas da vidente sobre um futuro promissor.
Temas
Personagens
Referências
JUSTINO, Luciano Barbosa. A hora da estrela: por uma leitura nordestina. In: Estud. Lit. Bras. Contemp., Brasília , n. 51, p. 64-82, ago. 2017 . Disponível em . Acesso em 08 abr. 2021.
LIM, Sora. Ausência, silêncio e marginalidade: um aspecto das personagens femininas no cine-romance do terceiro mundo. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rocco Digital, 2017.
LISPECTOR, Clarice. Panorama com Clarice Lispector (Entrevista). TV Cultura Digital. Disponível em . Acesso em: 05/04/2021.
Textos traduzidos
MOSER, Benjamin. Why this world: a biography of Clarice Lispector. New York: Oxford University Press, 2021.
LISPECTOR, Clarice. La hora de la estrella. Buenos Aires : Ediciones Corregidor, 2011.
LISPECTOR, Clarice. The Hour of the Star. London: Penguin Modern Classics, 2014.
LISPECTOR, Clarice. L'Heure de l'Étoile. Traduzido por Marguerite Wuncher. Paris: Des Femmes, 1984.
LISPECTOR, Clarice. Okmzik pro hvezdu [A Hora da Estrela]. In: Pet brazilsky'ch novel. Praha: Odeon, 1981.
Autor/a do verbete
Alexandre Ferreira Martins. Ilustração: Rodrigo Rosa.