Item
Jorge Amado: o romance do avesso da modernização brasileira
Documentos
Metadados
Miniatura
Título
Jorge Amado: o romance do avesso da modernização brasileira
Verbete
Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001) é, indiscutivelmente, até hoje, o romancista brasileiro mais conhecido e traduzido no exterior. Nasceu numa fazenda de cacau do sul do Estado da Bahia, no município de Itabuna. Considerava-se um típico romancista da Revolução de 30, de acordo com o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1961. Oriundo das oligarquias rurais, principiou, pela vivência boêmia e pela ação intelectual e artística, um movimento decisivo em direção aos segmentos oprimidos, um deslocamento de classe na criação literária, o que é bastante característico da segunda geração modernista, a mais politizada: a adesão às causas dos subalternos, pois era a hora e a vez do espoliado na literatura, em escala global.
Amado esquadrinhou um plano romanesco voltado para a expressão de valores e de reivindicações das camadas populares. Os chamados “romances da Bahia” dão a ver grupos populacionais alijados de uma modernização conservadora voraz. O trabalhador rural, o operário urbano, a criança abandonada, o pescador explorado, o negro marginalizado são os tipos sociais mais marcantes de uma obra reveladora dos entraves nacionais. A cidade de Salvador e os arredores compõem o cenário por onde circulam os esquecidos do progresso, sobrevivendo nas franjas do sistema-mundo, nas margens de uma modernidade incompleta. Os romances que constituem o “ciclo do cacau” também dão continuidade ao mesmo desenho romanesco, em que o campesino aparece em tensão complementar, agora, com a figura do coronel latifundiário, dono de grandes propriedades, que faz do domínio da terra uma estrutura de poder que abrange a todos, do agregado ao funcionário público, por estarem submetidos ao tacão do caudilhismo tradicional.
O programa romanesco de Jorge Amado segue um rigoroso enquadramento estético-ideológico, por certo um legado dos agitados anos 30: a figuração estética dos contornos sobressalentes de um país de base arcaica (colonização e escravidão), carimbada pelo atraso e pelo retrocesso, que conforma uma dinâmica social singular orientada para um suposto avanço técnico que evitasse os conflitos de classe, apostando na (re)conciliação permanente, a qual é defendida por membros de uma elite dirigente de verniz ilustrado. Desse modo, os lúmpen-proletários da periférica capital baiana e os trabalhadores das terras do cacau são aspectos constitutivos de uma nação caracterizada pelo descompasso e pelo descalabro, em termos de um desenvolvimento desigual e combinado (regionalismo e subdesenvolvimento).
O projeto nacional-popular de Jorge Amado apresenta uma unidade temático-formal que perpassa toda a obra, como um escritor que se manteve adepto dos ideários de 30, mesmo com os (re)ajustes ficcionais realizados ao longo de uma extensa carreira literária, completamente incomum no Brasil, inclusive com o registro público de uma absorvente convivialidade com os maiores artistas e intelectuais do século, pois experimentou como poucos a dimensão cosmopolita e contraditória da cultura na “era dos extremos”.
A efervescência da década de 1930 lhe forneceu régua e compasso para a sua imaginação ficcional, de tal maneira que Cacau e Suor compõem os veios literários inaugurais de toda a obra. Destarte, podemos falar em um ciclo do cacau ampliado que abrange Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela, cravo e canela e Tocaia grande. Do mesmo modo, podemos associar a série romanesca sobre a cidade mais negra do Brasil, com Jubiabá, Capitães da areia, Mar morto, Os velhos marinheiros, Os pastores da noite, Tenda dos milagres e O sumiço da santa. Temos, então, duas linhas de força que percorrem uma trajetória absolutamente exitosa em termos de aceitação pelo público, em âmbito nacional e internacional. Uma declarada opção pela formação e fidelização de leitores e não pela atenção às diatribes provincianas de parte da crítica especializada, em termos de estratégia narrativa, que leva em conta a tradição literária correlacionada aos desafios da mudança histórica, numa dialogia recorrente e deliberada com as formas de expressão da cultura popular: o folhetim, o cordel, o romanceiro, a oralidade, a mitologia afro-brasileira, etc.
Alguns pontos de inflexão devem ser observados do mesmo modo numa visão totalizante da obra em exame. Jubiabá enfatiza de modo inédito na literatura pátria o protagonismo negro na formação da brasilidade, tornando-se um motivo condutor, em vista do racismo estrutural no país. Terras do sem fim, considerada uma obra-prima do autor, realça um aspecto determinante da conjuntura nacional: o retrato do mandonismo local na figura do coronel astuto e cruel, no seu papel de desbravador de terras virgens, às portas da ordem recente do capitalismo financista internacional. Gabriela, cravo e canela, também estimada como outra obra-prima, inaugura a bem dizer uma nova frente no romance amadiano: a representação da mulher sexualmente livre em sua espontaneidade comportamental autêntica, em meio a uma sociedade baseada num patriarcalismo de origem rural. Com isto, Gabriela, Dona Flor, Teresa Batista e Tieta formam o painel dos perfis femininos que desafiam a hipocrisia e a repressão da família brasileira que vêm do tempo da casa-grande & senzala.
Nas décadas de 40 e 50, Jorge Amado esteve mais acentuadamente enfronhado nas lutas político-partidárias, chegando a ser deputado constituinte em 1946. A polarização da Guerra Fria afeta negativamente algumas obras, como a trilogia Os subterrâneos da liberdade. No entanto, depois da publicação de Gabriela, cravo e canela, nosso autor (re)descobre o humor, a sátira, a picardia como prismas essenciais de suas narrativas, estabelecendo uma distinta galeria de personagens memoráveis: Quincas Berro D’água, Vasco Moscoso de Aragão, Curió, etc. Malandros entre a ordem e a desordem da vida brasileira, lutando por autonomia e liberdade numa sociedade assimétrica em que predomina a condição obsoleta do exercício coercitivo do “favor”.
Em todo o repertório de personagens representativos de nossa organização social, estampado no conjunto da obra, vislumbra-se um notável esforço de decodificar ficcionalmente a formação controversa do Brasil: a exploração dos trabalhadores da terra e do mar, a violência dos mandatários locais, a brutalidade do patriarcado, a esperteza duvidosa dos malandros. Apesar da excepcionalidade nas condições históricas locais, Jorge Amado encarou a literatura na condição de escritor profissional, como ganha-pão principal, não subsidiária de outras ocupações, o que sempre havia sido regra no país, com o intelectual dependente do aparato estatal, da casta jurídica e/ou do meio jornalístico. Nosso autor atuou vigorosamente na imprensa alternativa de esquerda, esteve ligado às origens do cinema brasileiro com a elaboração de roteiros e ainda contribuiu na composição de letras de música em parceria, muitas procedentes de seus próprios romances. O índice extraordinário de vendagem de seus livros, a proeza de ser traduzido para quase 50 línguas chamaram a atenção de agentes culturais nacionais e internacionais. Diversas obras foram vertidas para o cinema, para o teatro e para a televisão, com a cessão dos direitos autorais. Sua produção literária adaptada foi, sob muitos aspectos, beneficiada pela expansão da indústria cultural no Terceiro Mundo, sobretudo quando no Brasil a telenovela se apropria de suas fabulações por intermédio de sons e de imagens que dão a ver em tom celebrativo para exportação ou consumo próprio a miscigenação, a sensualidade, a malandragem de uma pobre gente tropical, o que não significa que tal arranjo audiovisual coincida necessariamente com a forma e o conteúdo tão instigantes de seus romances mais emblemáticos que visavam a um país de futuro (realismo, história e utopia). Assim sendo, vale reafirmar e ressaltar, que a obra de Jorge Amado colaborou de maneira decisiva para a inserção da literatura brasileira na república mundial das letras, principalmente a partir da segunda metade do “breve século XX”.
Temas
Autores/as
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
BERGAMO, Edvaldo A. Jorge Amado, capitão de longo curso. Revista USP, nº. 95, pp.72-83, 2012.
FRAGA, Myriam; FONSECA, Aleilton; HOISEL, Evelina (orgs.). Jorge Amado: 100 anos escrevendo o Brasil. Salvador: Casa de Palavras, 2013.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN, 1996.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Textos traduzidos
AMADO, Jorge. Gabriela, clove and cinnamon. Translated by Bárbara Shelby Merello. Nova York: Alfred A. Knopf, 1962.
AMADO, Jorge. Gabriela, Clavo y Canela. Argentina: Editorial Losada, 1990.
AMADO, Jorge. Tent of Miracles. Translated by Barbara Shelby. New York: Alfred A. Knopf, 1971.
AMADO, Jorge. Violent land. Translated by Samuel Putnam. London: Penguin Classsics, 2013.
AMADO, Jorge. Captains of the Sands. Translated by Gregory Rabassa. London: Penguin Classics, 2013.
AMADO, Jorge. The Double Death of Quincas Water-Bray. Translated by Gregory Rabassa. London: Penguin Classics, 2012.
AMADO, Jorge. Dona Flor and her two husbands. Translated by Gregory Rabassa. London: Penguin Classics, 2006.
AMADO, Jorge. Gabriela, fille du Brésil. França: Ed. Seghers- L’inter, 1959.
AMADO, Jorge. Gabriela wie Zimt und Nelken. Berlim: Rororo, 1966.
Autor/a do verbete
Edvaldo Aparecido Bergamo. Ilustração: Rodrigo Rosa.