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Machado de Assis e a tradução
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Poucos nomes são tão unânimes entre leitores e estudiosos da literatura brasileira como é o de Machado de Assis, e a complexidade e riqueza de sua obra é atestada por uma fortuna crítica ímpar. Porém, apesar da posição privilegiada que ocupa no sistema literário brasileiro, ele ainda não atingiu o grande público além das fronteiras, embora almejasse ser traduzido para as demais línguas ocidentais. O pesquisador Hélio de Seixas Guimarães relata os esforços de Machado nesse sentido durante, pelo menos, 20 anos, tentativas bloqueadas pelo seu editor, Hippolyte Garnier. Também, como assinala Pablo Rocca, ele teve participação na primeira tradução de uma obra de sua autoria, apesar do bloqueio: Memórias póstumas de Brás Cubas foi publicada em espanhol no folhetim do jornal La Razón, de Montevidéu, em 1902 – e, na sequência, em livro –, em tradução de Julio Piquet. Em 1905 foi publicada a tradução não assinada de Esaú e Jacó em Buenos Aires pela Biblioteca de La Nación, uma coleção popular distribuída com o jornal La Nación. Essas foram as únicas traduções de sua obra que ele viu em vida. Se foi pelo bloqueio da Garnier ou pelo inesperado do surgimento de um autor de sua estatura em uma língua periférica e de discreta projeção internacional como o português não importa tanto: o fato relevante é que o Bruxo não tem no exterior a visibilidade e o reconhecimento popular que tem no Brasil, muito embora seja um autor muito conhecido e cultuado no meio literário, e tenha leitores famosos que fizeram grandes elogios, como Susan Sontag, que se espanta de Machado não ser conhecido como um dos grandes da literatura universal, Harold Bloom, para quem é “o maior literato negro (...) da literatura universal”, ou, para sair do círculo dos grandes críticos, Woody Allen, que considera as Memórias póstumas de Brás Cubas um dos cinco livros mais impactantes que leu.
Entretanto, a escrita machadiana surpreendeu seus contemporâneos e desconcertou a crítica durante muito tempo: Guimarães frisa o silêncio de 10 anos sobre Brás Cubas, só rompido após a publicação de Quincas Borba. Nas primeiras décadas muitos estudos davam grande ênfase ao aspecto autobiográfico da obra machadiana: mestiço, filho de um pintor descendente de escravos e uma mãe portuguesa que vivia como agregada da família de D. Maria José de Mendonça Barroso, sua busca por um espaço de relevo na sociedade foi um elemento largamente procurado na presença de agregados e famílias abastadas em seus contos e romances. Com o tempo, porém, a crítica foi produzindo leituras de complexidade cada vez maior, que vão desde os aspectos formais, como o estilo ou o estatuto ficcional de sua obra, até os temáticos, que incluem questões filosóficas, sociológicas, psicológicas, históricas, entre muitas outras.
Seja como for, a obra de Machado precisou aguardar muitas décadas para começar a ser melhor compreendida em sua complexidade e ainda demanda releituras e esforços críticos mais de um século depois. Nesse sentido, o processo de internacionalização de Machado demonstrou ser uma importante fonte de reflexão sobre seu trabalho. Os estudos da professora Helen Caldwell, da Universidade da Califórnia, revolucionaram a compreensão de Dom Casmurro, que ela traduziu para o inglês na década de 1950: até então visto como um romance sobre adultério feminino – calcado na famigerada pergunta de se Capitu traiu ou não –, a partir do estudo da pesquisadora passou a ser entendido como uma obra sobre ciúmes e relações de gênero em que a técnica narrativa, que apresenta como narrador personagem o próprio marido ciumento, desempenha um papel fundamental. Não por acaso, Caldwell afirma em correspondência a seu editor, descrita em artigo pelo prof. Hélio Seixas Guimarães, que os críticos brasileiros “estão subjugados e aturdidos por ele, chamam-no de ‘mito’, ‘enigma’, ‘esfinge’”.
Algumas décadas mais tarde o professor inglês John Gledson desenvolveria uma série de estudos sobre as relações da ficção machadiana com a história do Brasil, contestando outro dos lugares comuns da crítica: o suposto distanciamento de Machado da realidade política e social (notadamente as relações de classe e a escravidão) que caracterizaram seu tempo. Obras como Dom Casmurro, que Gledson posteriormente também traduziu, e Memorial de Aires foram ressignificadas, Casa Velha foi reivindicada pelo crítico como uma obra chave na produção machadiana e Esaú e Jacó e Quincas Borba receberam novas abordagens de leitura que reavaliaram seus liames com a realidade social e histórica do Brasil do século xix, além de identificar aspectos dos contos e, especialmente, das crônicas que revelam sua íntima relação com o contexto da obra de Machado, e a coerência do autor com o posicionamento declarado no seu famoso texto crítico Instinto de nacionalidade: para Machado, “o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país”.
Após as tentativas frustradas de Machado de ser traduzido e das duas traduções semiclandestinas produzidas no Rio da Prata ainda em vida do autor, falecido em 1908, o próximo esforço foi feito diretamente pela Garnier a partir de 1910. A pesquisadora Marie-Hélène Catherine Torres fez um levantamento das obras traduzidas até 1930 para o francês, espanhol, italiano e inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Várias histórias. Mas as traduções só começaram a se diversificar após a venda dos direitos sobre a obra de Machado serem vendidos para a casa W. M. Jackson em 1937. A partir de então, a diversificação aumentou constantemente, até a atualidade, em volume, títulos e línguas.
Não há dados precisos, mas se conhecem traduções de obras machadianas para dezenas de línguas. O Espaço Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, informa a existência de 73 traduções de textos de Machado publicadas em 16 línguas. O Index Translationum, projeto da Unesco que alimentou durante décadas o maior banco de dados existente sobre traduções, listava na sua fase final 79 traduções diferentes de obras machadianas em 19 línguas, incluindo, além das línguas ocidentais mais centrais, o basco, croata, tcheco, dinamarquês, sueco, holandês, catalão, entre outras, e também não europeias, como o hebreu, japonês, russo, árabe e chinês. Mas essas informações, que no mais são parcialmente coincidentes, são muito incompletas: para mostra, basta dizer que apenas para o espanhol, que aparece na lista com 16 obras, eram conhecidas, até 2011, mais de 74 traduções de obras machadianas detalhadas por Pablo Cardellino, sem contar antologias que incluam o autor ou traduções avulsas em livros, revistas e jornais diversos, pois nesse caso a conta chega a 145. Há outros estudos semelhantes, com idêntico corolário, até a mesma época: para o italiano, Anna Palma coligiu a existência de 29 traduções, e Klaus Küpper 14 obras de machado traduzidas para o alemão e 30 textos avulsos na sua Bibliographie der brasilianischen Literatur.
Um aspecto da produção machadiana que vem atraindo a atenção de estudiosos principalmente nos últimos 20 anos é a atividade tradutória do autor. Segundo Jean-Michel Massa, Machado exerceu a tradução como ofício eventual, com fins econômicos, e também como atividade antológica e de crítica literária, como forma de promover textos que considera valiosos. O crítico afirma que, em Machado, a atividade tradutória teve várias fases em que pode ser percebida a busca do autor por apurar a técnica da escrita. Uma lista parcial de sua produção como tradutor pode ser encontrada no verbete do Dicionário de Tradutores Literários no Brasil.
Em seu Instinto de nacionalidade, o mesmo ensaio em que defendeu o compromisso histórico e social do escritor, Machado recusou o excesso de cor local, mostrando que, mais do que da natureza dos temas, a existência de uma literatura nacional é função histórica de uma sociedade: está além do gênio de um único autor. Ao mesmo tempo cosmopolita e profundamente nacional, ele compreendia o poder da tradução, que usou para afiar sua pena e buscou como passaporte para chegar a outras nações. Os anos vão, aos poucos, fazendo justiça a seu legado, que excede em muito suas obras.
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Para saber mais
https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/issue/view/MAT
Referências
Freitas, Luana Ferreira de; Cardellino Soto, Pablo; Costa, Walter Carlos (Editores convidados). Scientia Traductionis 14: Machado de Assis & Tradução. Florianópolis, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/issue/view/MAT. Acesso: 29 mar. 2021.
Guerini, Andréia; Freitas, Luana Ferreira de; Costa, Walter Carlos (orgs.). Machado de Assis Tradutor e Traduzido. 1.ª Ed. Florianópolis: PGET/UFSC; Tubarão: Copiart, 2012. 160 p. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/178899. Acesso: 27 mar. 2021.
Guimarães, Hélio de Seixas. Helen Caldwell, Cecil Hemley e os julgamentos de Dom Casmurro. Machado Assis Linha v.12 n.27 São Paulo. Maio/Ago. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212019000200113. Acesso: 30 mar. 2021.
Rocca, Pablo. Machado de Assis, escritor do Rio da Prata: Duas hipóteses contraditórias. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 35-49, 2009. Disponível em: https://livrozilla.com/doc/1498077/machado-de-assis--escritor-do-rio-da-prata--duas-hipóteses. Acesso: 1 abr. 2021.
Torres, Marie-Hélène Catherine. Tradução como (i)migração: Adrien Delpech, um dos primeiros tradutores de Machado de Assis. Revista da Anpoll, v. 51, n. 3. 2020. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/1414. Acesso: 29 mar. 2021.
Textos traduzidos
Dom Casmurro. Traducción al español de Pablo Cardellino. Lima: Colmena Editores; Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 216 p.
https://colmenaeditores.wixsite.com/publicaciones/coleccion-caliban
Esaú y Jacob. Traducción al español de María Eugenia Llosa e Violeta Romero. Santiago, Chile: Fondo de Cultura Económica; Embaixada do Brasil, 2008. https://www.fondodeculturaeconomica.com/Ficha/9789562890717/F
Crónicas escogidas. Tradução para o espanhol de Alfredo Coello. México: Sexto Piso, 2008. 222 p. https://sextopiso.mx/esp/item/83/cronicas-escogidas
Las academias de siam y otros cuentos. Tradução para o espanhol de Francisco Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 2006. https://www.fondodeculturaeconomica.com/Ficha/9786071616753/F
Francês:
Dom Casmurro et les yeux de ressac. Tradução para o francês de Anne-Marie Quint. Paris: Métailié, 2002. 336 p. https://editions-metailie.com/livre/dom-casmurro-et-les-yeux-de-ressac/
Esaü et Jacob. Tradução para o francês de Françoise Duprat. Paris: Métailié, 1985. 334 p. https://editions-metailie.com/livre/esau-et-jacob/
Mémoires posthumes de Brás Cubas. Tradução para o francês de R. Chadebec de Lavalade. Paris: Métailié, 1989. 290 p. https://editions-metailie.com/livre/memoires-posthumes-de-bras-cubas-2/
Italiano:
Memorie Postume di Brás Cubas. Tradução para o italiano de Daniele Petruccioli. Roma: Fazi Editore, 2020. 340 p. https://fazieditore.it/catalogo-libri/memorie-postume-di-bras-cubas/
Don Casmurro. Tradução para o italiano de Traduzione di Gianluca Manzi e Léa Nachbin. Roma: Fazi Editore, 2014. 288 p. https://fazieditore.it/catalogo-libri/don-casmurro/
Inglês:
The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. [New York]: Penguin Classics, 2020. 368 p. https://www.penguinrandomhouse.com/books/618216/the-posthumous-memoirs-of-bras-cubas-by-machado-de-assis-translated-with-an-introduction-and-notes-by-flora-thomson-deveaux-foreword-by-dave-eggers/9780143135036
The Collected Stories of Machado de Assis. Tradução para o inglês de Margaret Jull Costa e Robin Patterson. New York: Liveright, 2018. 960 p. https://wwnorton.com/books/9780871404961/about-the-book/product-details
Dom Casmurro. Tradução para o inglês de Helen Caldwell. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009. 1.ª ed. 1960. https://us.macmillan.com/books/9780374523039.
Dom Casmurro. Tradução para o inglês de John A. Gledson. Oxford: Oxford University Press, 1997. 288 p. https://global.oup.com/academic/product/dom-casmurro-9780195103083
Autor/a do verbete
Pablo Cardellino Soto. Ilustração: Rodrigo Rosa.