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Surrealismo na Literatura Brasileira
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Comparada à mítica “Batalha de Itararé” pelo crítico José Paulo Paes, como a batalha que não houve, a recepção do surrealismo no Brasil vem sendo resgatada por estudos recentes de uma negativa insistente sustentada por escritores e críticos literários brasileiros. Essa espécie de “enterro” pode nos revelar, a contrapelo, uma presença produtiva e viva na Literatura Brasileira, ainda que pouco circunscrita a manifestações programáticas ou abundantes.
No panorama brasileiro da década de 20, a urgência do nacional, que implicava a redefinição da identidade brasileira e aquecia os debates estéticos em torno da questão local, se encontra disseminada no discurso intelectual da época e constitui uma verdadeira lente através da qual se mira as vanguardas estéticas que estouram na Europa. Segundo Boaventura, Alceu Amoroso Lima, como era conhecido Tristão de Athayde, condenou veementemente o movimento de origem francesa pelo perigo da ruptura das tradições. Vale lembrar que o surrealismo proclamava a necessidade imperativa de uma união entre a vida e a arte, questionando os mecanismos institucionais que estruturavam as práticas literárias e se lançava como um movimento existencial contra os valores burgueses de cultura e sociedade. A utópica união entre o real e o irreal impulsionava as propostas criativas que centralizavam o investimento criativo no sonho, no inconsciente, no acaso e nas uniões imprevistas da colagem, destronando, assim, as tradições criativas de cunho racionalista.
Neste contexto, para Athayde, o perigo representado pelos surrealistas consistia em defender estratégias criativas que salientavam a importância do inconsciente que, em suas palavras, eram "os resíduos do espírito”, “um mundo de larvas” e “de sombras furtivas". O surrealismo era uma “infecção literária” que deveria ser combatida. O mesmo receio ante o movimento aparece também na crítica de nosso grande modernista Mário de Andrade. Em seu texto “Avant la lettre”, de A escrava que não é Isaura, o escritor alertava contra “os perigos formidáveis” da “Substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente”. Entre as ameaças, o escritor precavê: “O mais importante é o hermetismo absolutamente cego em que caíram certos franceses na maioria de seus versos. / Erro gravíssimo. / E falta de lógica. / O poeta não fotografa o subconsciente. / A inspiração é que é subconsciente, não a criação”.
Entretanto, mesmo buscando caminhos próprios e críticos em relação ao movimento, o escritor segue de perto o surrealismo. Mário de Andrade lê o movimento francês de 1925 a 1940 através de La Nouvelle Revue Française, revista cujo diretor, Jean Paulhan (1884-1968), desentende-se com o líder surrealista em 1926-27 e passa a receber cartas furiosas de André Breton, Louis Aragon e Benjamin Péret. Entretanto, não por desconhecimento, o escritor poucas vezes se detém profundamente em discutir a contribuição estética surrealista. É dentro deste contexto que surge a revista Estética (1924), dirigida por Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda. Abrindo espaço ao surrealismo, a revista apresentava textos que experimentavam a escrita automática. Segundo Robert Ponge, em 1925, após terem lido a Nouvelle Revue Française e a revista Commerce, que publicou ensaio de Louis Aragon, os editores de Estética começaram a "escrever cartas surrealistas, conforme a receita de Breton". O crítico também informa sobre a possível reserva de Buarque de Holanda em mencionar a palavra surrealista ou supra-realista, termo usado na época, quando, por outro lado, faz uma colagem do prefácio e o lema da capa da publicação surrealista La Révolution Surréaliste no uso da expressão e reivindicação da "declaração dos direitos do sonho".
Neste texto, intitulado "Perspectivas", Sérgio Buarque de Holanda se dedica à reflexão sobre as formas inteligíveis da linguagem, ressaltando a incomodidade do estado de "virtude ilusória da linguagem dos cemitérios". O texto, pouco comentado pela crítica, denuncia a falsa paz da linguagem comunicativa enquanto conjunto de sentidos partilhados e cristalizados na sociedade, uma vez que os conceitos que as palavras encerram vinculam uma forma de pensar já viciada, ameaça de morte à dinâmica própria do pensar poético. Desgastadas pelo uso cotidiano, as formas inteligíveis perdem a possibilidade de portar um significado forte ou que se desvie do corrente e formam, então, o cemitério de que aqui se fala. Em outras palavras, Sérgio está em diálogo direto com as reflexões surrealistas sobre as formas da linguagem e sua relação com o conhecimento lógico, a estabilização de um sentido fixo, base do comunicativo, e a normatização de um conceito: "atmosfera irrespirável que nos propõe as formas inteligíveis, já mandam ao diabo tudo quanto possa preencher um termo, tudo quanto caiba entre as quatro paredes de um pensamento comunicável ou espresso" [sic]. "Perspectivas" toca no cerne da questão da linguagem como via de conhecimento, modo de definição de um objeto dentro de uma continuidade fixa ou de dinamização deste mesmo objeto através da instabilidade de uma linguagem que permanentemente se propõe a deslocar os sentidos comuns, como é o caso da linguagem buscada pelos surrealistas. Além disso, aqui se convoca o domínio do obscuro, a defesa da noite e, indo um pouco mais longe, se critica o princípio da racionalidade lógica.
Vemos, assim, como o surrealismo atua como um detonador da discussão teórica sobre a pensatividade poética, a forma da poesia e das imagens como uma via de conhecimento diferente, uma outra forma de pensar. Nesta busca, o primado do inconsciente e do sonho privilegiam a imaginação como impulso criativo em detrimento da lógica e da comunicação. É também no texto "Aventura", publicado por Prudente de Moraes na revista modernista Verde, que aparece, outra vez, a importância do sonho: "E por absurdo que pareça, nem todo mundo desistiu de conciliar o sôno [sic]. O sôno [sic], ao contrário, é que tomou o maior número de iniciativas". Outro nome importante para a aproximação das contribuições surrealistas no Brasil é o de Aníbal Machado, que também publicou na Revista Estética em 1925 seu primeiro conto “O rato, o guarda-civil e o transatlântico”. O escritor mineiro investe no diálogo com o surrealismo, principalmente na perspectiva de exploração do irreal que vive latente dentro do real e de um hibridismo que põe lado a lado o onírico e a consciência.
Será, por outro lado, o tom experimentalista e radical que nutria o surrealismo, o motivo da saudação entusiasmada ao movimento por Oswald de Andrade em ocasião da passagem do poeta Benjamin Péret pelo Brasil. Casado com a cantora brasileira Elsie Houston, Péret desembarca em terras brasileiras em 1928. Oswald de Andrade, na Revista de Antropofagia, anuncia sua presença: “Está em São Paulo, Benjamin Péret, grande nome do surrealismo parisiense. Não nos esqueçamos que o Surrealismo é um dos melhores movimentos antropofágicos. (...) Depois do surrealismo, só a Antropofagia”.
O elogio à descoberta do inconsciente e às "turbulentas manifestações pessoais", as quais poderíamos supor que se referem às experiências de escrita do sono ou dos jogos, nos situam bem na leitura de Oswald. A manifestação e culto do irracional, índice do desespero do civilizado e do fim de sua civilização, como indicava Mário, encontram acolhida no seio de uma nação que "já falava a língua surrealista" (Andrade). Ante as posições radicais da vanguarda contra as bases da civilização ocidental, o legado primitivo da sociedade brasileira para Oswald sai na frente e aporta o valor de legitimação ao movimento. Neste sentido, se por um lado fica atestada a aceitação de Péret dentro do grupo da Antropofagia, por outro, Oswald mostra sua “devoração” do movimento: o surrealismo aqui é “um dos melhores movimentos antropofágicos”.
Entretanto, fora do círculo mais canônico modernista, outras vias de aproximação ao movimento se configuram em nossas letras. Junto com Ismael Nery, Mário Pedrosa e Aníbal Machado, Murilo Mendes afirma ter compartilhado as primeiras notícias surrealistas na década de vinte. O escritor define sua recepção do movimento como "surrealismo à moda brasileira", uma aproximação crítica ao movimento que abraça estratégias criativas “além de muitos capítulos da cartilha inconformista, a criação de uma atmosfera poética baseada na acoplagem de elementos díspares”.
O poeta alagoano Jorge de Lima também tira proveito das estratégias surrealistas em livros como A invenção de Orfeu, de 1952, e A pintura em Pânico, de 1943. Esta última foi prefaciada pelo amigo Murilo Mendes que revela as afinidades do trabalho de Jorge com a colagem surrealista e o impulso desarticulatório das formas que propõe uma linguagem irredutível a um sentido unívoco e o movimento de "construir e destruir ao mesmo tempo" (Mendes). A ênfase que dá Murilo na importância das colagens de Max Ernst, que realizariam o princípio de desarticulação rimbaudiana e a urgência do pânico para a constituição de uma nova ordem, capta as tensões de um processo criativo que se situa entre o acaso e o deliberado, entre a manipulação intencional de figuras insólitas e a surpresa.
Incursões ao diálogo com o surrealismo posteriores podem ser vistas na produção artística de Flávio de Carvalho, Roberto Piva e Campos de Carvalho. Em Flávio de Carvalho se explora um surrealismo particular não como um movimento, mas como forma de ver e conhecer o mundo, como em A origem animal de deus (1973). Em Paranoia (1964), de Roberto Piva, o autor afirma trabalhar literariamente “Uma visão alucinatória de São Paulo”, utilizando o método da paranoia. Na esteira de Salvador Dalí, aqui se ativa uma interpretação da realidade que dá lugar ao delírio usado criativamente na geração de imagens duplas que fazem despontar mais de um sentido a um mesmo objeto. É também na prosa de Campos de Carvalho, notadamente em O púlcaro búlgaro (1964), que o desvio de qualquer linha realista e uma aposta na ambiguidade à beira do nonsense é travada.
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Movimentos e Tendências
Referências
ANDRADE, Mário de. “A escrava que não é Isaura”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1978.
BOAVENTURA, María Eugênia. Modernismo e Surrealismo. Disponível em: http://www.unicamp.br/~boaventu/page30b.html.
PAES, José Paulo. Gregos e Baianos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas, polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 1995.
Revista Estética, ano 1, vol. 1, n. 1, abr./jun., 1924. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/2075
Textos traduzidos
PONGE, Robert. "When Surrealism Appears in Brazil: Contribution to the Study of Cultural Dialogues between Europe and Latin America in the 1920s", Revue de littérature comparée, vol. no no 316, no. 4, 2005, pp. 431-442.
https://www.cairn-int.info/journal-revue-de-litterature-comparee.htm
MARTINS, Floriano. El surrealismo en Brasil. Alpha, Osorno, n. 21, p. 187-201, dic. 2005. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-22012005000100012
PONGE, Robert. “Lorsque le surréalisme paraît au Brésil: contribution à l'étude des dialogues culturels entre l'Europe et l'Amérique latine dans les années vingt”, Revue de littérature comparée, vol. n o 316, no. 4, 2005, pp. 431-442.
Autor/a do verbete
Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa. Ilustração: Rodrigo Rosa.