Documentos
Metadados
Miniatura
Título
Modernismo
Verbete
O Modernismo é um dos momentos mais relevantes da literatura brasileira. Surge em um clima de renovação cultural tangível desde início do século XX, mas o marco inicial foi a Semana de Arte Moderna, que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo, de 13 a 18 de fevereiro de 1922, organizada por um grupo de escritores e artistas, com apresentação de palestras, recitais de poesia e música, exposições de pintura e escultura. Aos promotores do evento, entre os quais Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Graça Aranha (1868-1931), Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Anita Malfatti (1889-1964), Victor Brecheret (1894-1955), logo se agregaram outros, como Manuel Bandeira (1886-1968), Raul Bopp (1898-1984), Alcântara Machado (1901-1935), Cassiano Ricardo (1895-1974), Plínio Salgado (1895-1975), Tarsila do Amaral (1886-1973), Di Cavalcanti (1897-1976).
Pensado como parte das comemorações do centenário da independência do Brasil (ocorrida em 1822), o Modernismo foi muito além dos projetos iniciais dos promotores da “Semana”, atingindo − com proposições críticas e polêmicas −, outros âmbitos e setores da sociedade, extrapolando o mundo das letras e das artes. Inicialmente os modernistas, em contato com manifestos e obras das vanguardas europeias, se sentiam os arautos de uma nova visão de arte e de uma estética mais afinada com as transformações do mundo moderno. Logo perceberam, no entanto, que esse cosmopolitismo exacerbado ocultava a consciência de uma profunda sujeição cultural, passivamente aceita e até mesmo cultivada pelos intelectuais e pela comunidade em relação aos países europeus, aos quais se sentiam ligados. Ocorre que os países que passam por um longo período de dominação, como aconteceu com o Brasil, carregam no próprio âmago as marcas de um projeto, atuado com eficácia pelos colonizadores, de rebaixamento e desvalorização de conhecimentos, saberes e fazeres dos povos subjugados, cuja consequência é a introjeção do desapreço pelas manifestações literárias e artística locais.
Cônscios de que perpetuavam padrões, conceitos e perspectivas eurocêntricos, com os quais buscavam atualizar a intellighènzia nacional, os modernistas reagem com decisão a essa prática no período que se segue à “Semana de Arte Moderna”. Deriva de tal consciência o desejo e mesmo a urgência, por parte dos escritores, de conhecer melhor o próprio país, para que, a partir dessa imersão na realidade e nos problemas concretos e atuais e na reavaliação do próprio universo, se pudesse estabelecer um efetivo diálogo com intelectuais estrangeiros.
Essas questões não eram novas no panorama nacional e já tinham sido postas no século XIX pelos escritores românticos, mas é com o Modernismo que tudo se radicaliza e, de fato, vem à tona a pluralidade de vozes distintas do país e as antinomias entre as várias regiões. O Modernismo foi, portanto, um momento privilegiado de reflexão sobre os problemas cruciais de um país periférico e desigual, com inteiras regiões invisibilizadas e marginalizadas. Era urgente, por outro lado, revisitar o passado para desconstruir as práticas de dominação atuadas sobretudo sobre os grupos considerados subalternos, como índios e negros, práticas ainda presentes na sociedade brasileira.
Os modernistas aparentemente coesos, pelo menos no início, se irradiam em grupos heterogêneos, que publicam manifestos e fundam revistas. E será justamente o esforço de reatar os fios com o passado e de recuperar a voz dos marginalizados da história a evidenciar as diferenças ideológicas e mesmo políticas que, sobretudo a partir dos anos trinta, marcará os rumos do movimento.
Os principais manifestos do período são o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, o “Manifesto Antropófago”, publicados por Oswald de Andrade, respectivamente em 1924 e 1928, e o “Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo”, publicado em 1929 por Menotti Del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Entre os dois primeiros manifestos e o último há uma diversa e oposta leitura e interpretação da história do país.
Para Oswald de Andrade, todo o passado colonial deveria ser lido à luz de uma severa crítica, uma vez que a história fora traçada pelo colonizador, cujo discurso visava à legitimação dos processos de dominação que causaram a extinção de milhões de índios. O escritor chega a sugerir, no “Manifesto Antropófago”, de 1928, que a história do Brasil deveria ter início não em 1500, com a chegada de Pedro Álvares Cabral, mas no “Ano 374 da Deglutição do bispo Sardinha” (Andrade). A referência irônica é ao naufrágio ocorrido no Nordeste em 1556 da embarcação na qual viajava o primeiro bispo do Brasil-Colônia, D. Pêro Sardinha, tendo ele sido capturado e literalmente devorado pelos índios Caetés. Seria esta, segundo Oswald de Andrade, a primeira legítima reação dos índios diante dos conflitos e da violência aos quais foram submetidos.
O grupo verde-amarelista, ao contrário, entende a formação do povo brasileiro como um encontro “predestinado” de povos, línguas, religiões e culturas que, em solo brasileiro, se fundiram harmonicamente, dando origem a um novo país. Desaparece, nesta decodificação do passado, as noções de conflito e trauma, em uma clara e evidente idealização do passado. Lemos no Manifesto “Nhengaçu Verde Amarelo” que a grande migração dos povos Tupis, em direção ao Atlântico, ocorrida precedentemente à chegada dos portugueses ao Brasil, serviu para preparar o terreno à colonização: “Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade.”
Como podemos ver, não é possível pensar no Modernismo como um movimento unívoco e monolítico, mas foi exatamente no embate de tantas concepções e visões diferentes de país que nasce uma nova consciência, e uma arte e uma literatura mais afinadas às exigências, aos valores e, por fim, a uma identidade nacional. Frutos desse percurso são as obras hoje consideradas marcos da literatura brasileira, como os livros Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, Martin Cererê, de Cassiano Ricardo, Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado, e tantas outras. Nas diferenças que as caracterizam, tais obras traçam retratos emblemáticos do país, que seus autores pretendiam que fossem os mais abrangentes possíveis, para que neles os brasileiros se pudessem reconhecer.
Até mesmo a língua portuguesa passa pelo crivo analítico dos modernistas, pois havia uma cisão entre o português falado, que ̶ ao incorporar termos e ritmos indígenas e africanos, tinha se distanciado da língua falada em Portugal ̶, e o português escrito, que seguia a gramática europeia. Com o Modernismo temos o reconhecimento de uma norma brasileira da língua portuguesa, que acolhe as diferenças fonéticas, lexicais e morfossintáticas do português falado e escrito no Brasil.
Para além das diferenças entre os vários grupos que, como vimos, surgiram logo depois da “Semana de Arte Moderna”, o Modernismo se expandiu em três fases distintas. Considera-se que o Primeiro Modernismo vai de 1922 a 1930, o Segundo Modernismo vai de 1930 a 1945 e o Terceiro de 1945 a 1960.
A primeira fase, dita “fase heroica”, no esforço de romper com velhas estruturas e de demolir valores ligados ao passado, lançou as bases de uma literatura verdadeiramente nacional. O Segundo Modernismo, por sua vez, é caracterizado por uma produção madura, que tem raízes bem saldas em solo nacional, com autores como Raquel de Queiroz (1910-2003), Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001), Érico Veríssimo (1905-1975) e outros. Com eles, o Modernismo se desloca pelo país, debruçando-se sobre realidades regionais e incorporando um olhar crítico e lúcido dos problemas endêmicos do país, como a seca no Nordeste, a injusta distribuição de terras, a marginalização de pobres e miseráveis, o abuso de poder por parte de autoridades, que gerava ainda muita violência no campo. Muitos desses autores foram perseguidos e inclusive presos, como Graciliano Ramos e Jorge Amado. Também a poesia alcançou um patamar elevado, com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Jorge de Lima (1893-1953), Cecília Meireles (1901-1964), Murilo Mendes (1901-1975), Vinicius de Moraes (1913-1980).
As ideias lançadas pela geração de 22 continuaram a fecundar a literatura e o prova a Terceira Fase do Modernismo, com autores de envergadura internacional, como Guimarães Rosa (1908-1967) e Clarice Lispector (1920-1977), traduzidos em muitos idiomas.
Temas
Movimentos e Tendências
Referências
ANDRADE, Mário de, Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo, 1974.
ANDRADE, Oswald. “Manifesto Antropófago”. In: A utopia Antropofágica, São Paulo, Globo e Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos [1959]. 4.ed. São Paulo: Martins, 1971. 2v.
MARTINS, Wilson. MARTINS, W. O Modernismo (1916-1945). 3.ed. atualizada. São Paulo: Cultrix, 1969.
OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo, Editora Unesp, 2015.
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo / Iluminuras / FAPESP, 1995.
TELES, Gilberto Mendonça. “Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo”; In: Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1978, p. 301.
Textos traduzidos
PICCHIO, Luciana Stegagno. Storia della letteratura brasiliana. Torino: Einaudi, 1997.
______. Antropofagia: dalla letteratura al mito e dal mito dalla letteratura. Letterature d’America (Roma), Bulzoni, ano II, n.8, p.3-43, 1981.
______. Dalle avanguardie ai modernismi. I nomi e le cose in Portogallo e Brasile. In: Dai modernismi alle avanguardie: Atti del Convegno dell’Associazione degli Ispanisti Italiani. Palermo: Flaccovio Editore, 1990. p.19-27.
TODOROV, Tzvetan. La conquista dell’America. Il problema dell’altro [1982]. Trad. de P. G. Crovetto. Torino: Einaudi, 1984.
GONZÁLEZ, Horacio. “Antropofagia y modernismo en Brasil: una visita al Museu da Língua”. In: Revista La Biblioteca, n.9, La expresión americana, 2009.
GOUVEIA, Saulo. The Triumph of Brazilian Modernism. The Metanarrative of Emancipation and Counter-Narratives. Chapel Hill: University of North Carolina, 2013.
Autor/a do verbete
Vera Lúcia de Oliveira. Ilustração: Rodrigo Rosa.
Palavras-chave
Modernismo | Oswald de Andrade | Semana de Arte Moderna de 1922