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Machado de Assis - Romancista
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“A vida dos livros é vária como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinquenta, outros de cem anos, ou de noventa e nove. [...] a imortalidade é que é de poucos”. Assim Machado de Assis, na Gazeta de Notícias em 1896, concebia a relação entre a obra e a sua matéria, a vida. Para além da imortalidade da Academia Brasileira de Letras, o já maduro romancista adentrava o panteão dos grandes escritores brasileiros, rumo à eternidade. Nascido em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, na então Capital Federal, Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis é considerado o ponto culminante da literatura brasileira do século XIX, e o consolidador de uma literatura cuja formação vai encontrar nele uma forma especificamente brasileira de representar o mundo pela ficção.
Sua trajetória literária e pessoal desenvolve-se tendo como pano de fundo os grandes acontecimentos da história do país. Fruto do encontro do que melhor representava a situação social nacional, Machado de Assis é filho de um neto de escravos – o sr. Francisco José de Assis – e de uma portuguesa da ilha de São Miguel, situada nos Açores – a sra. Maria Leopoldina Machado da Câmara. Ainda bastante cedo, passou a ter os seus primeiros contatos com o mundo das letras, momento em que se aproxima de personagens que se tornariam responsáveis por iniciá-lo no universo da literatura e na língua das obras que, anos depois, iriam influenciar a escrita de seus primeiros romances – o francês. Tomado pela atmosfera dos grandes romancistas da época – os portugueses Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Almeida Garret, e a escola romântica francesa, com os escritores Chateaubriand, Leopardi, Lamartine –, o jovem escritor passa a transitar pelo ambiente dos periódicos da época, conseguindo fazer suas primeiras publicações e aproximar-se de grandes nomes da literatura e da vida nacional: Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Paula Brito, Porto-Alegre, Quintino Bocaiúva, entre outras importantes figuras.
Embora tenha mantido uma intensa atividade como autor de textos para o teatro (cerca de dez peças entre traduções e originais), Machado passa a se destacar, em um primeiro momento, como cronista, papel que irá desenvolver quase até o final da vida, e também como poeta. A mudança em sua produção literária é também acompanhada pelas mudanças na vida pessoal. O reconhecido escritor de peças e poemas começa a aventurar-se na escrita em prosa, dando início com suas publicações semanais à escrita de contos, gênero que o acompanharia por muitos anos, tornando-o mais conhecido e com abertura com os editores, momento em que o escritor irá aproximar-se de Garnier e publicará o seu primeiro livro de poesia, Crisálidas (1864). O autor ainda assumiria o compromisso de entregar outros dois livros em troca do pagamento adiantado para arcar com as despesas do seu casamento com aquela que seria parte fundamental em sua vida e de sua obra: Carolina Augusta de Novaes. Como forma de cumprir o contrato com o editor, Machado entrega seu segundo livro de poemas, Falenas (1870), além de Contos fluminenses (1872), sua primeira reunião de textos do gênero.
Com uma escrita em prosa cada vez mais segura, o escritor, três anos após o lançamento de seus primeiros contos, publica o primeiro romance, Ressurreição (1872), estreia bem recebida tanto pelo público quanto pela crítica. Machado de Assis, já no começo da carreira de romancista, aponta para o que viria a se desenvolver ao longo da escrita de seus outros romances: um projeto de inovação que tensiona a relação com o leitor, formado com base nos preceitos românticos, além de uma escrita que busca, ao mesmo tempo, desarticular esses mesmos preceitos estéticos, dentre eles, o forte apelo sentimental e a necessidade de um certo ufanismo, sempre carregado de cor local, e promover um novo tipo de literatura e crítica. Essa primeira tentativa, ainda bastante falha, mantém seus entrechos românticos, seus encontros e desencontros amorosos, contudo o enredo rompe com as expectativas baseadas no convencionalismo. Novos elementos são adicionados à não realização afetuosa, antes pautada pelo impedimento por elementos externos à sua realização: a desconfiança e o ciúme, elementos esses que seriam retomados alguns anos depois no seu romance mais conhecido – Memórias póstumas de Brás Cubas.
Colaborador intenso da imprensa, Machado consolida-se nos jornais de grande circulação, principalmente por suas crônicas. Aproveitando o espaço de circulação desse meio, publica no jornal O Globo, em folhetim, o seu segundo romance, A mão e a luva (1874). Nesse momento, o autor passa a explorar a relação de desigualdade material entre as personagens Guiomar e seus pretendentes, tornando a paisagem social, ainda, apenas tema de seu trabalho, o que mudará a partir de 1881, com Memórias Póstumas, em que passa a ser parte da forma do romance. Dois anos após a publicação de seu segundo romance em livro, escreve Helena (1876), publicado no mesmo formato do anterior. A obra, uma das mais bem aceitas na época, aproxima-se do tradicionalismo, um romance cheio de tramas, sentimentalismos e reviravoltas. Todavia, Machado mantinha-se fiel a sua proposta de uma nova literatura: o quadro melodramático que tanto chamava a atenção do público é frustrado, a heroína órfã submetida a todos as formas de crueldade desaponta a todos com o seu sacrifício e a impossibilidade de final feliz.
O reconhecimento profissional e artístico passa a fazer parte da trajetória de Machado de Assis, que dedica boa parte de seu tempo à escrita do quarto romance, Iaiá Garcia (1878), publicado semanalmente em O Cruzeiro. Esse trabalho, embora mantivesse a atmosfera sentimental, já indicava o caminho que seria percorrido pelo autor dentro da literatura brasileira. Jorge e Estela, personagens principais, encontram no abismo social entre os dois a impossibilidade de sua realização amorosa, impossibilidade essa que passa a ser parte, ainda que de forma bastante incerta, da feitura do próprio texto, marcado ora pelo excesso, ora pela falta.
Machado conseguiu dar forma às transformações históricas de sua época, modificações visíveis e abstratas das concretas avenidas e bondes que surgiam à consciência dos homens e mulheres. O desabrochar de uma sociedade urbana, que, contudo, guardava em si resquícios do velho mundo patriarcal, do mando e desmando. A rua adquire em seus romances papel fundamental em oposição ao mundo colonial das fazendas, torna-se lugar de encontros, conversas, confabulações, traições e negócios. Seus primeiros romances são construídos a partir do choque com este novo mundo, porém com soluções ainda bastante pautadas em uma estética de retorno, nostálgica, situada frequentemente em um ambiente bastante idealizado, com resoluções ainda românticas. No entanto, já nesses primeiros romances, a paisagem começa a ser espaço de conflitos, de incômodos que são traduzidos em uma descrição desencontrada. Embora, possivelmente não soubesse, terminava ali um primeiro momento de sua produção.
Às vésperas de completar 40 anos, Machado é tomado por diversas moléstias, o que o obriga a se afastar por um tempo de suas atividades. Ainda em recuperação, dá início ao seu novo trabalho. Com problemas nos olhos, dita à Carolina as primeiras palavras de um novo romance: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. A obra que se tornaria o seu divisor de águas sai em capítulos na Revista Brasileira, reunida em livro em 1881: Memórias Póstumas de Brás Cubas. O leitor passivo habituado aos narradores de seus primeiros romances, passa a ser questionado, insultado, colocado em situação. O texto passa a ter capítulos curtos, possui uma linguagem mais coloquial, um narrador indigno de confiança, o autor brinca com as instâncias discursivas. O livro é construído dentro de uma lógica que, embora apresente certo estranhamento, não parece completamente desconhecida do leitor acostumado às arbitrariedades da época. Um narrador que faz afirmações, para em seguida contradizê-las, conforme sua vontade ou necessidade.
Marco da literatura brasileira, Memórias Póstumas foi recebido de forma ainda bastante tímida, poucos se arriscaram a escrever algo sobre a obra. Contudo, os leitores mais atentos, que percebiam a importância dessas memórias, mal podiam esperar pelo próximo trabalho do criador do defunto autor Brás Cubas. Três anos depois, publicaria uma de suas obras mais importantes, a reunião de 18 contos intitulada História sem data, consolidando-se como grande contista. Absorvido pela possibilidade de expansão de um de seus personagens do romance anterior, Machado dá início a escrita de Quincas Borba, publicado em folhetim entre os anos de 1886 e 1891 e sendo reunido em livro no ano seguinte. O tempo longo de escrita coincide com grandes momentos da história nacional, a Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889). Se sua postura em relação a segunda é discutível, em relação à campanha abolicionista, Machado contribuiu de forma decisiva enquanto chefe de seção da pasta da Agricultura, não apenas repudiando a escravidão em si, como sendo fundamental na aplicação da Lei do Ventre Livre em 1871 e no processo burocrático que levou a abolição da escravatura, sem jamais deixar de compreender as contradições e os significados de tal momento.
Em Quincas Borba, Machado aprofunda sua nova proposta, iniciada no romance anterior. Sob uma superfície de cordialidade, há a naturalização da irracionalidade, um constante embate entre o narrador e as vontades do leitor, conflitos de interesse subsumidos no constante embate entre fatos e aparência que percorre o mundo social de Rubião e Sofia. A recepção da obra, pela primeira vez, extrapolou as expectativas. O livro foi um grande sucesso de circulação, tornou-se tema das discussões, assunto de resenhas e artigos, arrancou elogios dos grandes notáveis da época, entre eles José Veríssimo, Araripe Júnior e Magalhães de Azeredo. Machado consolida-se como o grande homem das Letras, o maior romancista brasileiro, alcançando-se, com isso, à presidência da então fundada Academia Brasileira de Letras, idealizada por seus amigos Medeiros e Albuquerque e Lúcio Mendonça bem aos moldes da academia francesa, em 1897.
Dividido entre as sessões da ABL e suas obrigações no Ministério, o patrono das Letras passa a rascunhar um novo romance, obra de grande fôlego, de composição complexa, que irá se concretizar após o seu afastamento do serviço por licença involuntária. Em 1899 é publicada a obra mais debatida de Machado de Assis, sem dúvidas, a que mais percorre o imaginário brasileiro: Dom Casmurro. Antes de chegar às livrarias, os dois mil exemplares da tiragem haviam esgotado, sendo necessárias constantes novas edições. Um nostálgico e melancólico senhor conta sobre a sua vida em busca não só do auto-perdão, como da anuência do leitor. Bento Santiago narra uma suposta traição a partir de uma premissa: de que na adorável jovem de sua adolescência, já continha a mulher infiel e manipuladora de sua vida adulta. A tentativa de convencimento dá-se pela retórica de verossimilhança, cheia de suas falsas pistas e indícios, todos muito bem postos pelo narrador. Contudo, tal construção também gera uma certa desconfiança, que obriga o leitor a uma outra leitura, essa em sentido contrário. A ambiguidade com que o relato é construído possibilita, a partir de uma aceitação maior ou menor do que é dito pelo narrador, julgamentos muitas vezes opostos tanto sobre Bento quanto Capitu, assim como suas motivações. Tais ambiguidades passaram desapercebidas por boa parte dos leitores e críticos da época, que só enxergavam a traição. Embora outras possibilidades ao longo dos anos tenham sido levantadas, a resposta à questão que percorre o cotidiano dos leitores só é possível a partir da própria composição, da forma que ordena o livro. Nas palavras de Antonio Candido, “não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói a sua casa e a sua vida”.
Passados os anos, com o cansaço habitual, bem como as preocupações com a saúde, o sexagenário Machado de Assis anuncia sua última obra, assinada em contrato com seu editor, intitulada: Última. Uma reflexão madura sobre a incerteza, a impossibilidade das escolhas, de tomada de decisões, um encontro pessoal com a história do Brasil em sua passagem de Império para República, formalizada na vida de dois irmãos gêmeos. A obra sairia pouco antes da morte de sua esposa, com o título Esaú e Jacó (1904). Uma das mais bem recebidas, com tradução quase que imediata para o espanhol. Machado busca forças para continuar a vida, continuar sua produção literária. Em 1906, é publicada a obra Relíquias da Casa Velha, como o próprio nome sugere, uma reunião de trabalhos inéditos e publicados, entre eles seu soneto mais conhecido: “A Carolina”.
Ao contrário do que havia dito anos antes sobre a escrita do último livro, em carta ao amigo Mário de Alencar, Machado faz menção à possibilidade de escrever mais um romance. Já aclamado por seus leitores, quase unanimidade entre os críticos, Machado arrisca-se. Em 1908, dois meses antes de sua morte, é publicado Memorial de Aires. Nas palavras de Barreto Filho: “uma renda finíssima minuciosamente tecida”. Desde sua chegada ao público, o último romance de Machado de Assis tem gerado opiniões nem sempre convergentes. Para uns, seria uma forma de rememorar sua vida, um acerto de contas com o passado, descrever sua relação amorosa com a esposa, a ausência de filhos (crítica que, embora tenha algo de verdade, não alcança a totalidade da obra). Em 2008, centenário de morte do autor, teve sua primeira edição em língua alemã, lançado com o título Tagebuch des Abschieds: “Diário da despedida”. Para outros, talvez o leitor mais acostumado à escrita machadiana, encontram-se na duplicidade do diário do Conselheiro Aires, ecos de outros narradores, como Brás Cubas e Bento Santiago, o que o leva a desconfiar também dessa importante figura do segundo reinado que esconde em seu silêncio e em suas anotações todas as especificidades da vida social brasileira do final do século XIX.
Embora seja um escritor de porte internacional, ao contrário de seu reconhecimento interno como grande romancista, permaneceu pouco conhecido por muitos anos fora do Brasil, passando a ter certo reconhecimento a partir da tradução de seus romances para a língua inglesa, apesar de apenas duas traduções ainda em vida (uma edição no Uruguai em 1902, de Memórias Póstumas, e uma edição argentina, em 1905, de Esaú e Jacó). Outros convites ainda foram feitos em vida, sendo vetado por seu editor e detentor dos direitos autorais, Garnier. Somente nos anos 50, viriam a aparecer novas traduções, sendo uma para o alemão e a comentada tradução de Hellen Caldwell de Dom Casmurro, ao lado da tradução de William L. Grossman para o inglês. Hoje seus romances começam a ganhar notoriedade, traduzidos para um pouco mais de uma dúzia de línguas, entre elas sueco, francês, chinês, russo e turco. Como forma de reconhecimento de sua obra, é preparada uma edição para o catálogo da Modern Language Association.
Embora Machado de Assis nunca tenha saído do Rio de Janeiro, sua obra ultrapassou fronteiras, influenciou gerações, tornou-se ponto de partida para grandes escritores não apenas no Brasil como em todo o mundo. Com uma vida dedicada à produção literária, no dia 29 de setembro de 1908, em sua casa do Cosme Velho, às 3 horas, com uma obra monumental, morria o homem que se guardava por trás do pincenê, da casaca de gola alta e da cartola, mas não o escritor.
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Para saber mais
Referências
BASTIDE, Roger. “Machado de Assis, paisagista”. In: Revista do Brasil. Rio de Janeiro, n.º 29, ano II, 1940.
CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1981.
Textos traduzidos
ASSIS, Machado de. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Trad. Flora Thomson-DeVeaux. EUA: Penguin Classics, 2020.
_____. Cuentos. Trad. Santiago Kovadloff. Apresentação de Alfredo Bosi. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979.
CALDWELL, Helen. The Brazilian master and his novels. Berkeley: University of California Press, 1970.
DIXON, Paul B. Retired Dreams: Dom Casmurro, myth and modernity. West Lafayette: Purdue University Press, 1989.
GLEDSON, John. The deceptive reaslism of Machado de Assis: a dissenting Reading of Dom Casmurro. Liverpool: Cairns, 1984.
Autor/a do verbete
Diuvanio de Albuquerque Borges. Ilustração: Rodrigo Rosa.