Documentos
Metadados
Miniatura

Título
Brás Cubas
Verbete
O morto mais famoso da literatura brasileira voltou à vida em março de 1880, com o lançamento da primeira edição como folhetim das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Joaquim Machado de Assis (1839-1908). Estas memórias que o narrador e protagonista do livro dedica, desde o túmulo, “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver” (Machado de Assis), apareceram em 1881 em forma de livro, e a partir daí Brás Cubas ressuscitou inúmeras vezes, em diferentes línguas, por meio de reedições e traduções em todo o mundo, provocando a admiração de leitores muito prestigiosos, da estatura de Susan Sontag. Talvez porque Brás Cubas estivesse, como Salman Rushdie disse sobre Machado de Assis, cem anos à frente do seu tempo. Ou porque, como Dave Eggers escreveu mais recentemente em The New Yorker, a engenhosidade não envelhece, e Brás Cubas é, acima de tudo, um homem engenhoso. A verdade é que poucos mortos têm uma saúde tão boa.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é a obra-prima de um autor que produziu quase exclusivamente obras-primas. O livro narra a vida de Brás Cubas, membro da classe alta carioca que viveu entre 1805 e 1869 e que, após a morte, pode “confessar tudo”. O que é “tudo”? Pouco, em geral. Por exemplo, que morreu buscando fama com um emplastro destinado a remediar todas as doenças, e pelo qual contraiu, paradoxalmente, uma pneumonia fatal depois de passar um dia inteiro na chuva. Ou que o sobrenome de sua família tenha um passado menos ilustre do que eles gostariam de admitir. Em efeito, o fundador da família era um tanoeiro, mas o pai de Brás disse que ele era um senhor que havia recebido o nome de Cubas por capturar muitas cubas dos mouros em uma campanha militar (“mas quem não é um pouco pachola nesse mundo?”, pergunta-se o narrador). E, sobretudo, Brás confessa uma série de romances mal sucedidos e proibidos que estruturam a história: com Marcela, uma prostituta que Brás tenta conquistar com presentes; com Eugênia, dependente da família Cubas; e com Virgília, que decide se casar com outro homem de carreira política mais promissora, mas mantém relação adúltera com o narrador.
Diz-se que com este livro Machado de Assis acabou com a estética romântica no Brasil e inaugurou o realismo que dominaria nas décadas seguintes. É um realismo estranho, em todo caso, aquele que apresenta a partir da dedicatória um narrador que fala do além da morte. Por outro lado, a estrutura do romance é menos linear do que episódica, e Brás Cubas frequentemente interrompe a história para se dirigir ao leitor ou para se entregar a dissertações filosóficas sobre o Humanitismo, doutrina apresentada pelo personagem Quincas Borba, companheiro do colégio de Brás a quem Machado dedicou um romance inteiro em 1891. Por isso os críticos também dizem que Memórias póstumas inspirou o modernismo, ou que é mesmo um romance pós-moderno (Schwarz, 2006). Sem dúvida, é essa impossibilidade de classificar o livro que o tornou tão duradouro.
O estilo mordaz e engenhoso de Brás Cubas, a sua irreverência (que, no entanto, não encobre uma certa ternura) também foi comparada com The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, de Laurence Sterne (Schwarz 2006). Brás, como o seu par britânico, é um narrador caprichoso demais; nada pode contar sem se desviar da anedota. Os leitores agradecem esta incapacidade, porque nas digressões de Brás encontramos as suas passagens mais irônicas mas também mais reveladoras. Como, por exemplo, quando nega que, como Voltaire acreditava, o nariz se destina a dar suporte aos óculos. “Bastou-me atentar no costume do faquir”, diz Brás. “Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal”.
Brás Cubas é, sem dúvida, um homem que olha sem parar para o seu próprio nariz. Isto tem explicação acaso nas raízes históricas do livro, pois o Brás é, afinal, um produto da sociedade escravista brasileira do século XIX. Uma contradição se aninha nele, de fato: querer ser um homem moderno e esclarecido, sendo ainda a criança que, em um casarão no Rio de Janeiro, maltratava seus criados (Schwarz, 1990). E, como ele mesmo admite, “o menino é pai do homem”. Mas a sublimação do ser que Brás Cubas consegue ao olhar para o nariz são as memórias póstumas que ainda hoje lemos, mais de cem anos depois de terem sido publicadas pela primeira vez, bem distantes do seu contexto original de escrita. É que as contradições de Brás Cubas são típicas de um homem de sua época e também de qualquer ser humano. É difícil dizer, depois de terminar de ler suas confissões, se Brás alcançou ou não seus objetivos de vida; se devemos levar a sério o que ele nos diz; se ele foi feliz ou não. Seu pessimismo existencial é muitas vezes interrompido pelo humor, mesmo no final, quando se arrepende de não ter alcançado a fama que esperava. Mas nem tudo é ruim: “Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”, diz Brás, que conseguiu o impossível: que mesmo quem lê suas memórias no caminho do trabalho para ganhar a vida, no ônibus ou no metrô suado, sorria lendo as travessuras de um homem que tem a alegria de não conhecer as agruras do esforço. Graças a essa conquista, Brás Cubas alcançou a imortalidade a que aspirava.
Temas
Personagens
Para saber mais
Referências
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GOLDFAJN, Tal. “The Greatest Defect of This Book Is You, Reader”: On Two Translations of Machado de Assis’s “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”. Los Angeles Review of Books, 22 de setembro de 2020.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Ática, 1995.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Quincas Borba. São Paulo: Editora Ática, 1995.
SCHWARZ, Roberto. ”Leituras em competição”. Novos estudos
CEBRAP. 2006, n.75, pp. 61-79.
SCHWARZ, Roberto. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
Textos traduzidos
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Mémoires posthumes de Bras Cubas. Paris: Meatailié, 2000. Tradução de René Chadebec de Lavalade.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Memorias póstumas de Blas Cubas, Madrid, Alianza Editorial, 2003. Traducción de José Ángel Cilleruelo.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Oxford: Oxford University Press, 1997. Tradução de Gregory Rabassa.
SCHWARZ, Roberto. A Master on the Periphery of Capitalism. Durham: Duke University Press, 2002.
Autor/a do verbete
Lucas Mertehikian. Ilustração: Rodrigo Rosa.
Palavras-chave
Machado de Assis > Brás Cubas | Literatura brasileira > Romance