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Antropofagia
Verbete
A antropofagia como movimento literário no Brasil data de 1928, quando é publicado o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade, na Revista de Antropofagia, recém fundada pelo escritor e por seus companheiros modernistas Raul Bopp e Antônio de Alcântra Machado. A ideia para a escrita do manifesto partiu de um quadro que a pintora Tarsila do Amaral presenteou a Oswald, seu então marido, chamado Abaporu, que significa “homem que come gente” na língua tupi-guarani. O famoso quadro de Tarsila viria a ser um símbolo da arte modernista, e condensava, na pintura, a imagem de um Brasil primitivista, colorido e imponente, ao mesmo tempo em que dialogava com as formas mais intensas do expressionismo europeu. Ao olhar para o quadro, Oswald de Andrade entendeu que o cerne teórico daquela pintura deveria ser expandido como um movimento artístico revolucionário e consciente que tinha como ideia nuclear digerir a cultura que vem de fora, assimilando-a, de maneira crítica, para “regurgitar” uma espécie de arte original brasileira.
Nos compêndios de história e literatura, a antropofagia é um ritual de caráter místico praticado entre alguns povos que sacrificavam seus inimigos para posteriormente comê-los, acreditando que tal ato servia como forma de assimilação da sabedoria e da força dos sacrificados. Geralmente associada a algumas comunidades africanas e ameríndias, a projeção europeia que se fez a respeito da antropofagia foi quase sempre preconceituosa e permeada pela dicotomia artificial e simplista civilização x barbárie, selvagem x homem branco. Tal pensamento impregnava o imaginário cultural brasileiro a respeito da chegada dos portugueses às terras brasileiras, e é a partir desse ponto de virada histórica que Oswald de Andrade projeta um redescobrimento revisionista do Brasil desde uma nova perspectiva: “Só a antropofagia nos une” , escreve ele, referindo-se a uma nova forma de se relacionar, histórica e artisticamente, com o outro que vem de fora. Nesse sentido, o Manifesto Antropofágico engendra, propositadamente, essa oscilação dialética entre a antropofagia literal e a antropofagia literária: tal como alguns povos indígenas brasileiros praticaram o canibalismo com os colonizadores europeus, os modernistas agora conclamam que o mesmo deve ser feito em linguagens artísticas. Afinal, devorar o “inimigo” que vem de fora é a única maneira de assimilá-lo, transformando-o em nós mesmos.
É importante observar como o Manifesto Antropófago não deixou de ser, efetivamente, uma espécie de continuação – mais radicalizada – do movimento vanguardista nacional que teve início com a Semana da Arte Moderna de 1922, e de seus manifestos anteriores, como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, escrito pelo próprio Oswald em 1924. Entretanto, se a prosa poética do manifesto de 1924 buscava construir uma identidade brasileira pautada na ideia de exportação da nossa cultura, configurada na imagem do pau-brasil, primeiro produto de exportação brasileiro, em um movimento centrífugo que quer levar o que está do lado de dentro para fora, o Manifesto Antropofágico investe sua essência teórica no movimento oposto, qual seja o de uma experimentação centrípeta que quer trazer o que vem de fora para dentro, mas não para simplesmente copiá-lo, senão para incorporá-lo de maneira crítica e nacionalmente – ou “brasileiramente” – alegorizada. A metáfora do canibal, ou do antropófago, reconhece, dessa forma, uma necessidade de inversão histórica que quer atualizar a cultura brasileira, em um projeto consciente que forja o passado pré-cabralino e primitivista, ao mesmo tempo em que aglutina aquilo que vem de fora.
Assim como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o texto do Manifesto Antropófago é redigido em prosa poética, e faz referência a vários intelectuais e pensadores que à época surgiram com ideias revolucionárias, tais como Freud, Breton, Marx, os surrealistas, entre outros. A famosa frase “Tupi, or not tupi that is the question” está no manifesto e pode ser considerada o sumo da condensação aglutinadora que o movimento pregava: a frase original de Shakespeare, “To be, or not to be, that is the question” é “devorada” e devolvida de maneira original e em moldes nacionais, e é usada para instigar um processo de transferência e deslocamento históricos que revisam o passado nacional, ao mesmo tempo em que absorvem aquilo que interessa do estrangeiro.
Em 1929, Tarsila do Amaral apresenta a obra Antropofagia. Nela, a pintora dialoga intratextualmente com duas de suas obras, A Negra (1923) e Abaporu (1928), trazendo para a linguagem pictórica aquilo que os vanguardistas antropófagos brasileiros buscavam para a arte nacional: uma apropriação evidente de elementos de duas culturas (a negra e a indígena) para a criação aglutinante de uma só. É a fusão de dois elementos que, uma vez reunidos, perdem seu caráter local sem, no entanto, perder suas características fundamentais.
O movimento antropofágico dialogou com diferentes linguagens, tendo como figura central o escritor, poeta, dramaturgo, cronista e agitador cultural Oswald de Andrade. Destacam-se como principais marcos da Antropofagia a pintura Abaporu, de Tarsila do Amaral, o livro de poesia Cobra Norato, de Raul Bopp, e ainda a icônica As Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, que em sua composição faz clara referência ao compositor alemão Johann Sebastian Bach.
O grande legado da Antropofagia foi o surgimento de uma ideia de identidade cultural ciente e propriamente brasileira que está presente até hoje. Não à toa, na década de 60, os Tropicalistas reivindicaram a antropofagia como movimento de criação artística, incorporando guitarras elétricas a manifestações nacionais interioranas, como a Banda de Pífanos de Caruaru. A Bossa Nova, famosa fusão do jazz americano com o samba brasileiro, também pode ser considerada uma herdeira da ideia original aglutinadora de Oswald de Andrade.
Temas
Movimentos e Tendências
Para saber mais
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo74/antropofagia
Referências
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In: Acesso em 05 de abr. de 2021.
NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Editora Globo, 1990.
Textos traduzidos
ANDRADE, Oswald de (1991). Translated by Leslie Bary. "Cannibalist Manifesto". Latin American Literary Review. Pittsburgh: Dept. of Modern Languages, Carnegie-Mellon University. 19 (38): 38–47. JSTOR 20119601. Retrieved 2015-07-22.
GARCIA, Luis Fellipe (2020). "Oswald de Andrade / Anthropophagy". ODIP: The Online Dictionary of Intercultural Philosophy. Thorsten Botz-Bornstein (ed.).
Dunn, Christopher. Brutality garden : Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill, NC. ISBN 978-1-4696-1571-4. OCLC 862077082.
ANDRADE, Oswald. Escritos Antropófagos. Buenos Aires, Corregidor, 2001.
Autor/a do verbete
Mariana do Nascimento Ramos. Ilustração: Rodrigo Rosa.
Palavras-chave
Antropofagia | Semana de Arte Moderna de 1922 > Manifesto antropófago | Modernismo | Oswald de Andrade