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A música popular na literatura brasileira
Verbete
A música popular desempenhou um papel decisivo no processo de formação da literatura brasileira. No país, como assevera o crítico Antonio Candido, a literatura culta foi “um produto da colonização, um transplante da literatura portuguesa, da qual saiu a nossa como prolongamento” (1999). Nesse sentido, examinar os modos como a música popular está presente na literatura brasileira implica considerar como dicções, ritmos e melodias de cor local ressoam sobre uma sintaxe de matriz metropolitana transplantada para o Novo Mundo.
Ao longo do período colonial, entre 1500 e 1822, a oralidade se constitui como meio privilegiado de circulação da poesia em um país de iletrados. Padres jesuítas, como José de Anchieta e Antônio Vieira, se valeram da palavra cantada para catequizar os povos indígenas; o poeta barroco Gregório de Matos, como um trovador medieval, entoava seus versos acompanhado de uma viola; cantadores das regiões da Paraíba e de Pernambuco versejavam a partir do improviso em redondilha maior. Após a Independência (1822), a música popular reverbera intensamente sobre a literatura escrita, seja como presença material, evidenciada na acentuação dos versos hendecassílabos que emulam o rufar dos ritmos ameríndios no poema épico “I-Juca Pirama”, do poeta romântico Gonçalves Dias; seja enquanto presença espectral (Sandroni, 2012) do batuque afro-brasileiro que irrompe das senzalas nos romances Til (1872), de José de Alencar, e A Carne (1888) de Júlio Ribeiro.
As tensões entre o popular e o erudito na formação da música brasileira encontram nos contos “O machete” (1878) e “Um homem célebre” (1896), de Machado de Assis, uma primeira forma de encenação. Neles, a presença da mestiçagem, elemento que parece oculto na obra machadiana, se torna saliente no conflito ético-racial que subjaz às predileções musicais. Em outras claves, a problematização dessa preconceituosa relação que a sociedade brasileira estabelecia com a música popular mobiliza algumas passagens dos romances Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida; O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo; e O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (1915).
Ao longo dos anos 1920, sob o influxo dos projetos modernistas, os acenos da literatura à música popular se intensificam com a emergência de uma profunda reconsideração dos critérios de autorreconhecimento identitário, que já não podiam prescindir do papel desempenhado pela cultura negra. A despeito de seguirem fluxos distintos, em caminhos por vezes paralelos, os movimentos modernistas e a música comercial mantêm forte diálogo da bossa nova até a tropicália, para depois seguirem seus caminhos, transformados por este encontro. A partir de então, a canção se afirma enquanto um meio para o exercício da poesia e da narrativa, constituindo a partir do final dos anos 1950, ela mesma, um prosseguimento da moderna poesia brasileira, um Interregno, como nomeou Afonso Romano de Sant`Anna (1986).
No curso do século XX, a presença da canção popular na literatura brasileira também pode ser examinada sob o ângulo da intensa permeabilidade entre poesia escrita e poesia cantada no Brasil (Wisnik, 2004). Esse fenômeno pode ser observado na versatilidade de poetas que contribuem, enquanto letristas, com a canção popular, e no diálogo de cancionistas com a tradição poética brasileira, dela assimilando formas, temas e até mesmo versos inteiros. Cabe salientar, pelo menos, dois fortes pontos de inflexão nesse sentido: a) a migração do poeta Vinícius de Moraes para canção popular, que marca o esperado encontro entre o alto modernismo literário e a música popular; b) a assimilação que o movimento tropicalista realiza de práticas das vanguardas artística e literária brasileira, particularmente da sintaxe fragmentada e enumerativa da poesia moderna, do sincretismo resultante da assimilação seletiva da alteridade, proposto por Oswald de Andrade no “Manifesto antropófago” (1928), e do isomorfismo construtivo da poesia concreta presente em canções como “Batmacumba”, de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Os concretistas produziram importante reflexão crítica sobre o tropicalismo, inserindo-o em uma linha de continuidade de seu próprio trabalho (Campos, 2008), ao passo que os tropicalistas incorporaram a poesia concretista no seu processo criativo, musicando poemas como “O pulsar”, de Augusto de Campos, e um fragmento de “Galáxias”, de Haroldo de Campos, ambas realizadas por Caetano Veloso. A musicalização de poemas ocupa, a propósito, um extenso capítulo das histórias da canção e da literatura brasileiras, na medida em que realiza uma ampliação dos horizontes da poesia e reativam o interesse pelo texto original. Assim, Chico Buarque revisita a tradição da poesia moderna brasileira em suas versões de “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, e “O grande circo místico”, de Jorge de Lima; Caetano Veloso entoa poemas de Gregório de Matos (“Triste Bahia”) e Castro Alves (“O navio negreiro”); Zeca Baleiro dedica um álbum à musicalização da poesia de Hilda Hilst; Milton Nascimento canta os versos de Carlos Drummond de Andrade (“Canção amiga”); Raimundo Fagner os de Cecília Meireles (“Motivo”) e a banda Legião Urbana os de Camões (“Monte Castelo”).
Contemporaneamente, as relações entre música popular e literatura no Brasil são marcadas por uma intensa permeabilidade que pode ser evidenciada na incursão de cancionistas no romance (Chico Buarque), de romancistas na canção (“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, de Sérgio Sant’Anna), na atuação de poetas/letristas (Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, Capinan, Cacaso, Waly Salomão, Antonio Cícero, Adriana Calcanhotto e Arnaldo Antunes) e, atualmente, na irrupção da narrativa da periferia no canto falado do rap nacional (Racionais MC’s). Nesse sentido, os manuais de história da literatura são instados a ampliar seu escopo, abrindo espaço para a riqueza rítmico-melódica da poesia oral e da canção popular brasileira.
Temas
Temas Transversais
Para saber mais
Referências
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira: resumo para principiantes. 3 ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações no samba do Rio de Janeiro (1917-1933). 2 ed. Ampla. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
SANT`ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
Textos traduzidos
DUNN, Christopher. Brutality garden: tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press, 2001.
GARRAMUÑO, Florencia. Primitive modernities: tango, samba and nation. California: Stanford University Press, 2011.
VELOSO, Caetano. Tropical truth: a story of music and Revolution in Brazil. New York: Da Capo Press, 2003.
VIANNA, Hermano. The mystery of samba: popular music and national identity in Brazil. Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press, 2000.
WISNIK, José Miguel. Música popular brasileña y literatura: la gaya ciencia. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 2019.
Autor/a do verbete
Alex Martoni; Pedro Bustamante Teixeira. Ilustração: Rodrigo Rosa.