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Riobaldo e Diadorim
Verbete
Dois jagunços, Riobaldo e Diadorim, imiscuídos no amor e no ódio, encenam o enredo da monumental obra de João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas. Narrado em primeira pessoa, o romance é engendrado no discurso de Riobaldo já velho, fazendeiro abastado que relembra seu passado a um visitante enigmático, interlocutor essencial para que o trabalho de memória se faça. Essas reminiscências recuperam as noites em que Diadorim e o Diabo povoavam seus pensamentos noturnos. No ato de narrar, quando tudo é já passado, Riobaldo pode enunciar o impossível à sua época de jagunço. A experiência do tempo para o narrador-personagem é travessia discursiva e, portanto, reveladora.
Vertigem da multiplicidade, assim talvez se pudesse nomear a sensação do leitor em seu primeiro contato com o romance. Posto que o relato de Riobaldo, especificamente nas primeiras páginas do romance, se organiza conforme as lembranças o acometem, em detrimento de uma organização cronológica e linear dos fatos. E isso o sabe o próprio Riobaldo, que indica já no início o papel que desempenhará seu interlocutor: “O senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto”. O leitor perspicaz, tomando-se como extensão quase inevitável desse interlocutor, assume para si essas tarefas. Não se sai incólume da leitura de Grande Sertão: Veredas.
Sendo assim, o caos narrativo inicial nos faz entrever uma visão de mundo atribulada pelas ambivalências. Entre o bem e o mal (personificados na figura de Deus e o Diabo), Riobaldo hesita, angustiado como todo “homem-humano”, culpado como poucos pela possibilidade de ter feito um pacto com o Demônio. De antemão, temos, portanto, esse jagunço do interior do Brasil prefigurando uma espécie de Fausto moderno, uma versão sertaneja do mito alemão. O suposto pacto é ato extremo sob o peso da existência: como ter coragem face à ameaça constante que é a vida? “Viver é muito perigoso”, Riobaldo reitera incontáveis vezes ao longo da narração.
Se o pacto com o Diabo é a questão fulcral de Riobaldo, o amor por Diadorim é, por sua vez, o fio que conduz a narrativa. Como explicar esse deslumbramento que o atrai irremediavelmente em direção a seu amigo, outro homem, jagunço bravo, mais até que ele? Lutar contra essa paixão ou arriscar perder a vida, a honra e permitir ao corpo cumprir o seu desejo? E assim, Diadorim é como a Beatriz de Dante: amor não consumado, motivo poético. Figura chave da narrativa, Diadorim guia o relato e determina os eventos a serem narrados.
De fato, Diadorim é o elemento central dos acontecimentos basilares da vida e da narração de Riobaldo. O primeiro deles, ainda na infância dos personagens, é a experiência decisiva do encontro inicial. Os dois se conhecem às margens do rio de-Janeiro e Diadorim o convida a atravessá-lo de barco. O rio, em suas muitas águas, é o próprio objeto do medo de Riobaldo, que não sabe nadar. É quando Diadorim, aqui chamado por Riobaldo de o Menino, vai ensiná-lo: “carece de ter coragem”.
O reencontro, alguns anos mais tarde, é o segundo momento crucial. Riobaldo havia se separado do grupo de Zé Bebelo, de quem era professor e secretário. Ali, o Menino é agora o Reinaldo, que o assegura diante do restante dos jagunços e o convida a fazer parte do grupo. Nesse momento, a luta se dava ainda entre, de um lado, os jagunços, chefiados por Joca Ramiro, e do outro os policiais e Zé Bebelo, aliado do governo, com intenções políticas. Sendo assim, é Diadorim quem insere Riobaldo no meio da jagunçagem: o convite à coragem assume, desse modo, contornos mais nítidos. Riobaldo passa a conviver muito de perto com o perigo e a morte, ao passo que a amizade por Diadorim se revela a ele como amor. No desenrolar do enredo, Joca Ramiro é morto em traição por Hermógenes e Ricardão, e a história vira de rumo: os jagunços se dividem e o objetivo maior de Diadorim se torna vingar a morte do pai. Zé Bebelo, que de inimigo passa a aliado, assume a chefia do bando.
Nas idas e vindas da guerra, os personagens cruzam o Sertão, espaço quase mítico da narrativa, mas que ao mesmo tempo recupera, em sua referência concreta, parte do interior do Brasil. A partir daí, Guimarães Rosa pode lançar mão de seus conhecimentos acerca da flora e da fauna brasileiras: na boca de Diadorim, detalhes da paisagem amorosamente apontados a Riobaldo – o nome das flores, o comportamento dos passarinhos, a paz de cada rio. Lições de delicadeza transformadoras desse ambiente de tamanha crueza. Do mesmo modo, do drama individual de um homem, em suas questões existenciais, o romance se faz também um retrato do Brasil, em suas belezas e mazelas.
Terceiro grande evento da vida de Riobaldo, o momento final da guerra, é quando, enfim, Diadorim cumpre a vingança, matando Hermógenes à faca, e sendo morto por ele. A cena é muito reveladora: agora chefe, apartado dos demais jagunços, Riobaldo visualiza o quadro da luta do alto de um sobrado. Distanciamento que se antevê ainda nos acontecimentos imediatamente precedentes: mal começada a batalha, Riobaldo se afasta do bando devido a uma suposta situação de perigo para a noiva. Mas a dispersão de Riobaldo começara mesmo antes, desde seus planos de casamento com moça filha de fazendeiro; de sua ambição de seguir carreira política; em suas excentricidades como chefe. Assim, na medida em que Diadorim cava mais fundo seu ódio se embrenhando sem volta em seu desejo de vingança, Riobaldo se desvia da jagunçagem, cada vez mais destoante dos companheiros.
Vale ressaltar que, de Diadorim, não temos mais que as palavras de Riobaldo. É pelo olhar dele que o conhecemos, é com ele e por ele que aprendemos sua verdadeira identidade: corpo morto, Diadorim se revela moça virgem. Ao leitor atento, desde mesmo o começo da obra, é possível vislumbrar alguns vestígios do feminino em Diadorim, dissimulados em passagens ambíguas ou pequenos detalhes aparentemente irrelevantes como os braços alvos e delicados, que contrastam com o rosto vermelho, maltratado pelas picadas de mosquitos; os insólitos banhos de madrugada, na escuridão; o isolamento para cuidar das feridas. Personificando também a própria ambivalência, Diadorim, por sua vez, retoma a milenar lenda chinesa de Muh-Lan, encenando a donzela-guerreira, confluindo em si as forças do feminino e do masculino, do amor e do ódio, da coragem e do medo.
Diferentemente de Riobaldo, que empreende ao longo do curso das ações uma verdadeira jornada de aprendizagem, Diadorim parece se encaminhar para um destino acabado, privada de sua própria vida, cerceada de qualquer possibilidade de escolha. Isso pode ser notado inclusive na relação dos dois personagens e os nomes que recebem. Riobaldo é o Cerzidor, o Tatarana e, finalmente, o Urutu-Branco. As alcunhas marcam simbolicamente sua evolução no bando e são indicativos de aumento de poder e influência sobre os outros jagunços. Diadorim é Reinaldo para o bando e Diadorim apenas para Riobaldo, em segredo de amor. Seu nome oficial, que revela seu verdadeiro sexo, é conhecido apenas após a morte - Maria Deodorina - encontrado por Riobaldo em sua certidão de batismo, tempos depois. Para Diadorim, portanto, o nome representa seu alheamento e privação. Diadorim sequer tem direito à herança do pai morto: só resta a ele/ela a luta bruta, o ódio da vingança, um corpo camuflado e um amor que não poderá viver.
Entre Riobaldo e Diadorim se faz, assim, um abismo intransponível: aquele que separa a vida e a morte. A Riobaldo, que fica, resta apenas narrar sua culpa, em busca senão de um perdão, ao menos do luto que jamais pudera viver. E é disso que trata seu relato: entre Deus e o Diabo, há o humano; entre o masculino e o feminino, há Diadorim; entre o medo e a coragem, há a travessia.
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Para saber mais
Referências
BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2004.
COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. Coleção Fortuna Crítica, v. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
UTÉZA, Francis. João Guimarães Rosa: metafísica do grande sertão. Trad. José Carlos Garbuglio. São Paulo: Edusp, 1994.
Textos traduzidos
ROSA, João Guimarães. Diadorim [Grande Sertão: Veredas]. Trad. Jean-Jacques Villard. Paris : Albin Michel, 2006.
___________________. Grande Sertão. Trad. Edoardo Bizzarri. Milão: Feltrinelli, 2011.
__________. The devil to pay in the backlands [Grande Sertão: Veredas]. Trad. James Taylor e Harriet de Onís. Nova York: Knopf, 1966.
__________. Grande Sertão: Roman. Trad. Curt Meyer-Clason. Munique, dtv, 1994.
__________. Gran Sertón: veredas. Trad. Ángel Crespo. Barcelona: Alianza Editorial, 1999.
Autor/a do verbete
Fabricia Walace Rodrigues. Ilustração: Rodrigo Rosa.