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Literatura indígena
Verbete
Pensar o conceito de “literatura indígena” implica pôr em questão alguns de nossos pressupostos. O que significa cada um desses termos - “literatura” e “indígena” - e por que eles estão num glossário de literatura brasileira para estrangeiros?
“Literatura”, neste âmbito, não pode ser apenas “letras”. Devemos incluir a oralidade como um dos seus elementos. Assim como diversos textos fundadores de outras tradições literárias, dos épicos gregos às baladas medievais, os povos indígenas contam suas histórias e cantam suas canções e rezas com a voz, dentro de diversas tradições nas mais de 160 línguas indígenas hoje faladas no Brasil (ISA 2019), assim como em línguas europeias (tanto o português como as línguas faladas em fronteiras, como o espanhol e o inglês).
Essas múltiplas tradições foram registradas de diversas formas ao longo dos cinco séculos de violência que se seguiram à invasão portuguesa. Se jesuítas como o padre José de Anchieta (1534-1597) se interessaram mais pelo registro linguístico, a partir do século XIX e da obra de precursores como o General Couto de Magalhães (1837-1898) começa um registro mais frequente da produção oral indígena. Alguns desses registros acabaram marcando a obra de escritores conhecidos da literatura brasileira, como os registros de mitos dos povos taurepang e arekuná pelo antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que foram lidos e transformados por Mário de Andrade em seu romance Macunaíma (1928). Assim, defendo que registros da oralidade, mesmo quando tenham sido realizados por não-indígenas, também sejam considerados parte da literatura indígena.
O que o escritor guarani Olívio Jekupé chama de Literatura escrita pelos povos indígenas (2009) tem início bem mais recente, a partir da intensificação de movimentos pelos direitos indígenas nos anos 1970. Já nesse início, percebe-se que essa literatura se vincula fortemente a questões políticas, demarcando em território literário o que se busca demarcar na terra. Segundo Graça Graúna, poeta, professora e doutora em literatura do povo potiguara, a escrita do poema “Identidade indígena”, de Eliane Potiguara, em 1975, marca um início para o que chama de “movimento literário indígena contemporâneo no Brasil”. A obra de Eliane, que foi marcada pela publicação de periódicos e livros políticos entre os anos 1980 e 1990, teve um ápice na publicação de Metade cara, metade máscara em 2004. Outro marco é a publicação de Antes o mundo não existia: Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã, de Umusi Pärökumu e Tõrāmā Këhíri, em 1980, por se tratar da primeira publicação em livro com autoria indígena.
A consolidação da literatura indígena contemporânea no Brasil se deu a partir dos anos 1990, com a publicação do livro de memórias Todas as vezes que dissemos adeus, de Kaká Werá (1994) e de Histórias de índio, de Daniel Munduruku (1997). O livro de Daniel possibilitou o crescimento da publicação de livros para crianças e adolescentes, uma das principais tendências da produção indígena atual, com nomes como os de Yaguarê Yamã, Lia Minapoty e Cristino Wapichana, dentre muitos outros. Outras vertentes da produção atual passam pela poesia (Tiago Hakyi, Márcia Wayna Kambeba), pelo conto (Julie Dorrico, Jaider Esbell) e pelo romance (Daniel Munduruku, Ytanajé Coelho Cardoso).
Há, ainda, produções que aproximam a literatura indígena do pensamento político e filosófico. A oratória é parte ancestral das tradições orais indígenas, e é por discursos que líderes do movimento indígena como Raoni Metuktire, Mário Juruna, Álvaro Tukano e Sonia Guajajara têm se manifestado. Discursos e entrevistas destes e outros líderes foram publicados em periódicos e reunidos em livros, que são parte legítima da literatura indígena. Dentro dessa tendência, as obras de Ailton Krenak e Davi Kopenawa merecem menção especial. Ailton já publicou diversos livros, em grande parte resultantes de palestras ou entrevistas. Seu Ideias para adiar o fim do mundo (2019) tem marcado a discussão sobre aquecimento global, o antropoceno e as relações entre humanos e não-humanos.
Os livros mais recentes de Ailton discutem com a obra de Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), possivelmente um dos livros mais importantes publicados neste século. Do diálogo entre Kopenawa e Albert surgiu um livro que passa pela autobiografia, pela metafísica yanomami, pela crítica da cultura contemporânea e por diversas outras áreas, criando um gênero próprio e novo.
Como se vê desse pequeno histórico da literatura indígena, pode-se ver que é uma produção que passa pelo oral e pelo escrito; pela narrativa, poesia, oratória e ensaio; pela autoria individual e coletiva. Este último item é importante de ser ressaltado: “indígena”, em “literatura indígena”, demarca a literatura com autoria indígena, que pode ter um autor nomeado ou ser atribuída a um povo como coletividade. Nisso se diferencia do indianismo, a corrente do romantismo brasileiro que tematizava um indígena nacionalista idealizado, e da literatura indigenista, a literatura moderna ou contemporânea que tem o indígena como tema mas tem autoria não indígena (como em romances de Antonio Callado e Darcy Ribeiro). A diferenciação entre literatura indígena, indianista e indigenista é bem explorada por Janice Thiél (2012).
Por fim, podemos pensar que a literatura indígena põe em questão o conceito de literatura brasileira. Os povos indígenas vivem para além de fronteiras nacionais e linguísticas - temos guaranis no Brasil, no Paraguai e na Argentina, temos yanomami no Brasil e na Venezuela, e muitos deles falam e escrevem em diversas línguas. Embora a literatura indígena demarque um espaço na literatura brasileira, de maneira nenhuma ela se reduz ao Brasil - um texto como o de Davi Kopenawa é um patrimônio para os yanomami no Brasil, assim como os guarani brasileiros reivindicam, reescrevem e traduzem o Ayvu rapyta, texto sagrado registrado pela primeira vez no Paraguai. Cada povo indígena é uma nação com literatura própria, em conflito e diálogo com as literaturas dos Estados-Nação coloniais. Cada obra literária indígena é uma arma num conflito pela afirmação dos povos indígenas, arma contra o genocídio há mais de 500 anos em curso.
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Para saber mais
BIBLIOGRAFIA DAS PUBLICAÇÕES INDÍGENAS DO BRASIL
Referências
Dorrico, Julie; Danner, Fernando; Danner, Leno Francisco (Orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: autoria, autonomia, ativismo. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. Disponível em https://www.editorafi.org/765indigena.
Graúna, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
Instituto Socioambiental. Verbete “Línguas”. Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt/Línguas. Modificado em 18 de outubro de 2019.
Jekupé, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo: Scortecci, 2009.
Thiél, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. São Paulo: Autêntica, 2012.
Textos traduzidos
Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. The Falling Sky: Words of a Yanomami Shaman. Belknap Press, 2013.
Krenak, Ailton. Ideas to Postpone the End of the World. House of Anansi Press, 2020.
Munduruku, Daniel. Amazonia: Indigenous Tales from Brazil. Groundwood Books, 2013.
Yamã, Yaguarê. Literatura indígena que no es ficción. In: Valladares Grangeiro, Glória, e Parreiras, Ninfa (orgs). Cuentos infantiles brasileños: cuentos brasileños de antaño y hoy. BBB Producciones de San José, 2011.
Autor/a do verbete
Pedro Mandagará. Ilustração: Rodrigo Rosa.