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Guimarães Rosa – Contista
Verbete
Ao falar dos contos de João Guimarães Rosa, gênero no qual mais produziu, não se poderia deixar de mencionar títulos como: “O burrinho pedrês”, “São Marcos” e “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Sagarana; “Famigerado”, “A terceira margem do rio” e “A benfazeja”, de Primeiras estórias; “Desenredo”, de Tutaméia, e “Meu tio o Iauaretê, de Estas estórias.
Natural de Cordisburgo, no estado de Minas Gerais, Guimarães Rosa (1908-1967) teve enorme projeção como escritor e é responsável por uma vasta obra em prosa que abriu novos caminhos na Literatura Brasileira, sendo considerado um dos pontos mais elevados da prosa modernista. Além de escritor, foi médico e diplomata com intensa carreira internacional.
Pouca gente terá compreendido tão profundamente o homem sertanejo como ele, talvez pelo convívio intenso desde muito cedo com este universo. A imaginação fabuladora já se manifestara desde criança; conta ele que entre suas distrações estava a de imaginar geografias, criar narrativas em que figurava gente conhecida de seu convívio pessoal. Já homem feito e vivendo em grandes centros do Brasil e do exterior, buscava sempre o reencontro com sua terra natal em busca de inspiração e material para figurar em suas obras. Tinha o hábito de montar em lombo de cavalo e sair pelo sertão adentro, anotando, em cadernetas penduradas ao pescoço, tudo quanto podia sobre a fala dos sertanejos, a cartografia daquele espaço, a fauna, a flora, os rios. É deste material que são feitas suas narrativas.
Sua estreia oficial se dera em 1946 com a publicação de Sagarana, uma coletânea de nove contos vazados num vigoroso (exuberante) estilo regionalista, todos ambientados no sertão mineiro. Do volume, duas narrativas particularmente o notabilizariam, a primeira e a última, quais sejam: “O burrinho pedrês” e “A hora e a vez de Augusto Matraga”, esta, inúmeras vezes adaptada para o teatro e cinema, com destaque especial para a versão cinematográfica de Roberto Santos, de 1966, que percorreu o mundo em vários festivais internacionais. A crítica especializada de imediato o saudou. “Sagarana”, escreveu Álvaro Lins, é “o retrato físico, psicológico e sociológico de uma região do interior de Minas Gerais, através de histórias, personagens, costumes e paisagens, vistos ou recriados sob a forma da arte de ficção”. A observação de Álvaro Lins pode ser ampliada a todas as obras do escritor, pois contém as duas principais linhas de força da prosa rosiana: o apuro formal da linguagem e o trato dispensado à questão regionalista que, em sua obra, aparece completamente transformada, superando e encerrando de certa forma uma já cansada tendência praticada na Literatura Brasileira desde José de Alencar. O fato é que Rosa não reproduziu o regionalismo convencional dos seus antecessores, mas fez um regionalismo universalizante ao abordar os grandes dramas do homem: o amor, o ódio, a dor, a morte, o medo. Esses temas universais aparecem muitas vezes na fala do homem simples do campo, rústico, inculto, deixando claro que os grandes fantasmas da existência assolam a qualquer um.
Em 1956, saem Corpo de baile, contendo sete novelas que continuam a experiência iniciada em Sagarana, e Grande sertão: veredas, em que é contada a história de Riobaldo, um ex-jagunço que narra a um interlocutor as batalhas que travou, seu possível pacto com o diabo e a história de seu amor proibido por Diadorim. Rosa é novamente reverenciado pela crítica, sua fama começa a percorrer o mundo e começam a surgir as primeiras traduções de seus livros na Itália, Estados Unidos, Canadá e Alemanha.
Retornando ao conto, Guimarães Rosa publica em 1962 Primeiras estórias, um conjunto de vinte e um contos breves ambientados em região não especificada, mas, a medir por obras anteriores, somos imediatamente levados a pensar esta coletânea como que incrustadas no sertão mineiro, seu locus de enunciação predileto. Trata-se de um excelente livro para aqueles que almejam adentrar o universo e a linguagem do autor para, depois, enfrentar material de maior envergadura como Grande sertão: veredas, por exemplo. É de Primeiras estórias o canônico “A terceira margem do rio”, narrativa que conta a história de um fazendeiro pai de família que, que sem razão aparente, deixa lar, mulher e filhos e vai morar em um pequeno barco. Nunca retorna ao seio familiar e jamais explica a razão do feito, que mais parece pertencer ao inconsciente, a uma razão profunda, à feição do rio que navega. “A benfazeja” conta a história de Mula Marmela, uma pobre mulher condenada a viver com um marido violento e temível assassino e, depois da morte deste, com seu enteado, igualmente truculento, embora cego. Quando afinal morre marido e enteado, pode seguir sua sina: uma grande morte solitária.
Tutaméia é de meados de 1967 e, assim como Primeiras estórias, corresponde a uma coletânea de contos curtos, num total de quarenta. A esta altura a técnica narrativa do escritor já atingiu seu ponto máximo, as singularidades formais se amplificam a ponto de alguns qualificarem este livro como hermético e denso. “Desenredo” é o conto mais estudado do volume e o que melhor ilustra o livro. Trata-se de uma história de adultério muito ao gosto do homem sertanejo. Jó Joaquim, o protagonista, se apaixona e se torna amante de uma mulher casada cujo nome oscila entre Livíria. O marido a flagra com um terceiro indivíduo e, na fúria de marido traído, mata-o. Temendo o ocorrido, Jó Joaquim se afasta de Livíria, muito embora continue a amá-la. Tempos depois é o marido de Livíria que vem a morrer, abrindo caminho para que o amor de Jó Joaquim por ela se consume. Mas, ao contrário, o que ocorre tempos depois, é Jó Joaquim quem flagra a mulher com um outro e acaba por expulsá-la do vilarejo onde moram. Corroído pela saudade e disposto a perdoar a amada, Jó Joaquim consegue convencer a gente do lugar de que a mulher nunca o traíra, eis o desenredo. A par da desconstrução por que passou por seu passado de adúltera, Livíria retorna e os dois são felizes como nunca ninguém o fora naquele lugar.
Estas estórias, publicado em 1969, dois anos depois da morte de Guimarães Rosa, e contém contos e novelas, totalizando nove narrativas. Do volume, o que mais imediatamente se nota é o conto “Meu tio o Iauaretê”. Trata-se de uma narrativa por muitos aclamada como a obra prima do autor, alternando essa posição vez ou outra com Grande sertão: veredas. Haroldo de Campos em “A linguagem do Iauaretê” afirma que o conto “representa, a nosso ver, o estágio mais avançado de seu experimento com a prosa.” (CAMPOS, 1992, p. 48). O conto é narrado em primeira pessoa e trata da história de um onceiro (Tonico), mestiço de pai branco com mãe índia, que fora designado pelo fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para “desonçar” um dos confins dos Gerais. Lamentando a condição de isolado com seu interlocutor – um sujeito amedrontado que se perdera nos fundões do sertão – na medida em que o tempo passa, vai abandonando suas características humanas e se aproximando das dos animais. Diz constantemente que ao parceiro que pode virar onça quando bem entender, ao que o interlocutor se amedronta, mas não abandona a rústica estalagem, pois é noite fechada. A linguagem do onceiro vai gradativamente se hibridizando de português com tupi e onomatopeias de ruídos e rugidos de onça; tudo se passa como se a própria linguagem fosse ganhando as malhas típicas da pelagem da onça. Ao final, a linguagem está totalmente transformada, tudo indica que o onceiro, de fato, virou onça.
Guimarães Rosa faleceu no dia 19 de novembro de 1967, três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Está eternizado pelo legado literário que deixou.
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Referências
CAMPOS, Haroldo. “A linguagem do Iauaretê”. In: Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1970.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
LINS, Á. Uma grande estreia. In: COUTINHO, E. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1983. p.237-242.
Textos traduzidos
ROSA, João Guimarães. Sagarana: a cycle of stories. Trad. Harriet de Onís. New York: Alfred. A. Knopf Press, 1966.
ROSA, João Guimarães. The third bank of the river and other stories. Trad. Barbara Shelby Merello. New York: Alfred. A. Knopf Press, 1968.
ROSA, João Guimarães. Das dritte Ufer des Flusses. Trad. Curt Meyer-Clason. Frankfurt am Main: Kiepenheuer & Witsch, 1968.
ROSA, João Guimarães. Premières Histoires. Trad. Inès Oseki-Dépré. Paris: Métailié,1982.
Autor/a do verbete
Valteir Vaz. Ilustração: Rodrigo Rosa.
Palavras-chave
Literatura brasileira > Conto | Guimarães Rosa | Literatura brasileira > Modernismo