Documentos
Metadados
Miniatura
Título
Regionalismo no Brasil
Verbete
O primeiro passo para compreender o Regionalismo literário no Brasil é reconhecer que estamos diante de uma polêmica. Esse debate - que é também um campo de disputa - se constrói em torno de uma expressão genuinamente local, regional, em oposição a uma manifestação mais universalizante ou geral. Tal embate é central no desenvolvimento literário no Brasil e demonstra de forma muito peculiar as marcas da relação entre a expressão artística e o desenvolvimento histórico.
Em um país com dimensões continentais como o Brasil, é muito natural encontrarmos diferenças culturais que se expressam nas variantes linguísticas, nos costumes, nas vestimentas ligadas aos mais variados tipos de climas, na relação estabelecida com o meio natural, também diverso (Floresta Amazônica, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal, Pampa), e, consequentemente, na manifestação das formas literárias no decorrer da nossa história.
Para ilustrar brevemente as bases dessa polêmica, é importante mencionar o debate entre os literatos Franklin Távora (1842-1888) e José de Alencar (1829-1877) acerca do romance O Gaúcho, publicado em 1870. Para Távora, faltava a Alencar a necessária observação da peculiaridade, do específico, para que seu romance fosse uma "genuína expressão" dessa peculiaridade.
A discussão se dá entre dois escritores nascidos no Ceará acerca da representação literária de personagens gaúchos, do Sul. Ambos escritores, vivenciaram em sua trajetória os desdobramentos históricos do próprio país: a passagem da centralidade econômica e política do Nordeste para o Sul, mais especificamente para o Rio de Janeiro. Não será possível tratar aqui em mais detalhes os motivos dessa transição, mas é importante apontar como este movimento histórico está pautado em uma luta constante entre a busca por uma coesão e unidade nacional em detrimento a uma fragmentação das forças que se deu especialmente na passagem do Império para a República.
Alencar desejava representar literariamente toda a diversidade brasileira, por isso suas obras retratavam cenas de Norte a Sul. Contudo, seu olhar para as regiões tão diversas partia de um sentimento oposto ao demonstrado por Távora: as diferenças regionais contribuem para construção da nação brasileira, unida na diversidade existente mas representativa da unidade nacional que, é preciso salientar, a literatura ajudou a construir. Já para Távora, as obras deveriam representar as especificidades de cada região, mais importante que a conexão com o todo nacional.
Nesse embate, o local e o universal passam a ser amados ou odiados por nossos escritores e pela crítica. Para muitos, o bom escritor era aquele que se concentrava na representação estética desse local, desse singular que poderia ser denominado como "brasileiro", recusando com todas as forças o que fosse exterior dessa cultura genuinamente nacional. Já outros, negavam o bairrismo e estabeleciam sem nenhuma culpa seu debate com autores europeus, fugindo a todo custo das referências locais.
Soma-se a essa polêmica, os escritos de Machado de Assis (1839-1908). Em 1873, no texto "Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade", Machado relaciona de forma diversa esse embate entre a "cor local" e o universal. Para Assis, aferrar-se a qualquer um desses pólos é deixar de representar aquilo que realmente é o Brasil, em suas relações e em seu posicionamento no mundo.
Seguindo essa chave de leitura machadiana, a crítica literária consegue - somente no século XX - explorar essa polêmica e contribuir para a compreensão da categoria Regionalismo, enquanto força constitutiva e dialética da literatura brasileira. Antonio Candido (1918-2017) aponta como o regionalismo se coloca como um dos principais aspectos formativos da literatura brasileira por fundamentar-se na dialética entre o local e o universal. Funcionando como um nexo subterrâneo de nossa literatura, a dialética local e universal se materializa no prestígio e na desvalorização que a região teve na produção literária, já que esse movimento de aproximação e afastamento estabeleceu a própria tradição literária nacional.
Essa contradição, que é duplamente histórica, materializa-se na forma literária como etapa necessária do desenvolvimento da nossa produção artística, pois permitiu uma focalização da realidade local. Mesmo que essas manifestações resultassem, algumas vezes, em imagens pitorescas, elas possibilitaram que nossa literatura estivesse presente no mundo. O embate que há entre a idealização e transfiguração do real nas produções de Alencar e Távora, por exemplo, fundamentou tanto uma percepção desajustada e amena do próprio Brasil, assim como captou momentos bem específicos de nossa história.
É preciso ressaltar, também, que a região como particularidade e peculiaridade local, não foi, por exemplo, em Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego (1901-1957) e Rachel de Queiroz (1910-2003), “apenas motivo de contemplação, orgulho ou enlevo; mas também complexo de problemas sociais, percebida pelos nossos intelectuais” (Candido, 2000), transfigurando artisticamente movimentos próprios do nosso desenvolvimento histórico.
E, a partir dos processos internos da formação da literatura brasileira, foi possível que autores, mesmo partindo do local, ou do exótico e do pitoresco, conseguissem alcançar uma capacidade maior de transfigurar o próprio embate entre o local e o universal, como se deu nas décadas de 1930 e 1950. É necessário registrar como Graciliano Ramos (1892-1953) e Guimarães Rosa (1908-1967), cujas formas de expressão são tão distintas, conseguiram equacionar com muito rigor e eficácia estética um local que é o próprio Brasil, ao mesmo tempo que ali também está todo o mundo humano, em sua manifestação mais íntima.
A partir da segunda metade do século XX, o país passa por um outro processo de transição política e econômica: o social-desenvolvimentismo, que contribui para a mudança da capital do Sudeste para o Centro-Oeste, abrindo outros campos para a literatura regional. Com autores como Bernardo Élis (1915-1997), Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), Autran Dourado (1926-2012), José J. Veiga (1915-1999), para citar apenas alguns, reavivam a polêmica entre literatura regional e urbana, ampliando nosso olhar para locais ao mesmo tempo tão específicos e tão intimamente relacionados com o resto do Brasil e do mundo.
Seja pela via do fantástico ou de uma aproximação ao cotidiano mais concreta, esses autores marcam um outro momento da polêmica, chamado por Walnice Nogueira Galvão (2005) de Neorregionalismo. Nomes como Milton Hatoum (1952), Márcio Souza (1946), entre outros, mantêm viva essa polêmica que dá cada vez mais fôlego à literatura brasileira.
Temas
Movimentos e Tendências
Referências
CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda., 2000.
CANDIDO, A. Literatura e Subdesenvolvimento. Educação pela noite e outros ensaios. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CHIAPPINI, M. L. L. Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. In: II Simpósio Luso-Afro-Brasileiro, Universidade de Lisboa, Lisboa, abr. 1994. Disponível em: . Acesso em: abr. 2008.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As musas sob assédio. Literatura e indústria cultural no Brasil. São Paulo: Senac, 2005.
GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba, UFPR, 2014.
Textos traduzidos
The Places of History. Regionalism Revisited in Latin America. Edited by: Doris Sommer. Duke University Press. 1999.
“Rios, pontes e overdrives”: Northeastern regionalism in a globalized Brazil.Ernst, Kirsten Marie. University of California, Berkeley. 2007.
Literature and Underdevelopment. Antonio Candido. https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/9780822385462-004/html.
CANDIDO, Antonio, “Literatura y subdesarrollo”, América Latina en su literatura, César Fernández Moreno (coord.), México, Siglo XXI / UNESCO: 2000.
Autor/a do verbete
Daniele dos Santos Rosa. Ilustração: Rodrigo Rosa.