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Futebol na Literatura Brasileira
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O impacto do futebol no Brasil é um fenômeno fundamental para compreensão de sua sociedade. Desde a chegada do esporte bretão no fim do século XIX, esse jogo domina as práticas de lazer, gera imensa produção discursiva, em destaque na pauta diária de todos os meios de comunicação, e causa forte impacto no mercado financeiro internacional. É, sem dúvida, um dos principais temas da cultura popular brasileira, tornando-se um estimulante modo de descrever o país. Assim, escritores e intelectuais procuraram se ocupar dessa temática, buscando os melhores ângulos para expressarem a rica linguagem advinda do campo de jogo e dos desdobramentos fora dele.
A crônica, especialmente a carioca, foi decisiva para a consolidação do futebol enquanto prática no Brasil, ajudando a edificar a sua imagem mítica na modernidade e contribuindo para a composição da identidade da nação. Afinal, antes dos anos 1950, as notícias dos craques como Leônidas da Silva (1913-2004) ou Heleno de Freitas (1920-1959) só chegavam à população por meio dos jornais impressos. Alguns dos autores fundamentais que acompanharam o surgimento do jogo foram Coelho Neto (1864-1934), compositor do primeiro hino do Fluminense Sport Club, de 1915, e Lima Barreto (1881-1922). Suas crônicas lapidares sobre futebol foram publicadas em Lima Barreto versus Coelho Neto: um Fla-Flu literário (2010).
Os irmãos jornalistas Mário Rodrigues Filho (1908-1966), cujo nome foi empregado na denominação do estádio do Maracanã, e Nelson Rodrigues (1913-1980), o maior dramaturgo brasileiro, foram alguns dos mais influentes cronistas, pois seus textos ultrapassam os limites do jogo ao enaltecer sua atmosfera e incidentes extracampo. Uma mostra dessas crônicas pode ser encontrada nas compilações O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva [19]55-59, de Nelson Rodrigues, e O Sapo de Arubinha: os anos de sonho do futebol brasileiro (1994), de Mário Filho, que “reconstitui as primeiras décadas da história do futebol brasileiro em tom lírico, dramático ou humorístico, mas sempre numa linguagem simples, leve, que convida à leitura”, afirma o pesquisador Marcelino da Silva (2018).
Muitos outros jornalistas se dedicaram a pensar o jogo com profundidade literária, dentre eles Armando Nogueira (1927-2010), autor de Bola na rede (1973), que procura recriar, por meio de sua prosa lírica, a emoção do torcedor; João Saldanha (1917-1990), em tom de conversa de bar, revela-nos episódios pitorescos relativos ao mundo do jogo e da política em Os subterrâneos do futebol (1982); e Ruy Carlos Ostermann, autor de Itinerário da derrota (1992), que nos conta com maestria a campanha da mítica seleção brasileira na Copa de 1982.
Igualmente merece destaque Quando é dia de futebol (2002), de Carlos Drummond de Andrade, que reúne grande parte do que o autor escreveu sobre as Copas do Mundo de 1954 até 1986, além de alguns poemas magistrais. É interessantíssimo constatar como o futebol gradativamente passa a desempenhar um papel de protagonista junto à cultura brasileira nessa obra. Os primeiros textos de Drummond marcam um período em que o Brasil ainda não possuía título mundial, e os últimos, pelo contrário, já o afirma como o país da bola: “o futebol tomou conta do mês de julho, a menos que, com a provável vitória da Seleção Brasileira na Espanha, ele ocupe a atenção e a emoção dos brasileiros até o final de dezembro, se não preferir fazê-lo durante os próximos quatro anos ou mesmo até a consumação do século” (Drummond, 2002).
A crônica, de fato, mostra-se o gênero brasileiro mais profícuo, escritores do passado, como João do Rio (1881-1921), Paulo Mendes Campos (1922-1991), Sérgio Porto (1923-1968) e Roberto Drummond (1933-2002) ou do presente, Luis Fernando Veríssimo (1936), Xico Sá (1962) e Roberto Torero (1963), dentre tantos outros, sempre atraíram os leitores à procura de narrativas futebolísticas menos informativas e mais lúdicas, até mesmo transgressoras.
Depois da crônica, o conto é o gênero que mais se relaciona com o futebol, com destaque para o primeiro livro de contos Maracanã, adeus: onze histórias de futebol (1980), de Edilberto Coutinho (1933-1995), autor pernambucano, vencedor dos prêmios Casa de las Américas, de Havana, e o Grand Prix, de Paris, na categoria tradução. Neste livro, o escritor nos revela como o jogo se insere de modo determinante no cotidiano de vários personagens populares, assuntos como racismo, machismo e exploração do trabalho são evidenciados. Outro título que merece destaque é Contos de futebol (1997), de Aldyr Garcia Schlee (1934-2018), criador do desenho da camisa da seleção brasileira, em 1953, diga-se de passagem. Originalmente lançado no Uruguai, em 1995, suas narrativas são ambientadas num território fronteiriço entre esse país e o Brasil, onde o autor nasceu, em Jaguarão/RS. Nas obras de Edilberto e Aldyr encontramos “os momentos maiores da ficção sobre o futebol que já se escreveu entre nós. O tema é recriado de forma pungente nesses dois contistas de importante presença em nossas letras. [...] Encanto, feitiço e misérias estão presentes em histórias narradas com tensão e poesia” (Mattos, 2006).
Relevante também são as antologias de contos de futebol que circulam pelo Brasil, são cerca de duas dezenas. Milton Pedrosa, em Gol de letra: o futebol na literatura brasileira (1967), fez o primeiro esforço de reunir em coletânea cinco contos dispersos que narram o jogo em suas primeiras décadas – “Herói” (1922), de Lima Barreto; “Corinthians 2 vs. Palestra 1” (1927), de Alcântara Machado (1901-1935); “O torcedor” (1943), de Coelho Neto; “De tarde e domingo” (1943), de Osvaldo Dias da Costa (1907-1974); “O defunto inaugural” (1959), de Aníbal Machado (1894-1964).
Também merecem ênfase algumas compilações que promoveram originais histórias do “povo” em contato com a bola: Meia encarnada, dura de sangue (2001), de Ruy Carlos Ostermann, 22 contistas em campo (2006), de Flávio Moreira da Costa, Contos brasileiros de futebol (2006), de Cyro de Mattos, e Entre as quatro linhas: contos sobre futebol (2013), de Luiz Ruffato. Além de escritores, esta última antologia traz seis inéditos contos de reconhecidas escritoras brasileiras, são elas: Eliane Brum (1966), Adriana Lisboa (1970), Carola Saavedra (1973), Tércia Montenegro (1976), Ana Paula Maia (1977) e Tatiana Salem Levy (1979). Em sua maioria, os contos abordam o futebol como um antagonista das personagens femininas, pois seus parceiros atribuem mais importância ao jogo do que ao relacionamento. Isso é decisivo, por exemplo, no conto “Um dia, uma camisa”, de Salem Levy.
Nas últimas décadas, romances também assumiram a tendência de colocar o futebol como plano central de seu enredo: Os jogos de junho (1981), de Eustáquio Gomes (1952-2014); Memórias de uma bola de futebol (2002), de Renato Pompeu (1941-2014); O campeonato (2002), de Flávio Carneiro (1962); O paraíso é bem bacana (2006), de André Sant’Anna (1964); Páginas sem glória (2012), de Sérgio Sant’Anna (1941-2020); O drible (2013), de Sérgio Rodrigues (1962). e O último minuto (2013), de Marcelo Backes (1973).
O romance Flô, o goleiro melhor do mundo (1941), de Thomaz Mazzoni, por muitos anos foi apontado como o primeiro escrito no Brasil. No entanto, hoje, segundo pesquisas recentes, O grande desportista, de Pascoal Toti Filho (1892-1934), publicado em 1922, em Uberaba/MG, é considerado o romance a inaugurar o tema na literatura brasileira (Dias, 2017).
Com relação ao gênero lírico, algumas obras trazem o futebol como tema central, tais como: Futebol e mais nada: um time de poemas (2010), de Thereza Christina da Motta (1957), Futebol em poesia (2014), de Hani Hazime (1945), e O jogo, Micha e outros sonetos (2019), de Wilberth Salgueiro (1964).
No entanto, as antologias de poesia sobre o jogo da bola têm maior destaque no cenário nacional. Em Gol de letra, Milton Pedrosa nos apresenta uma seleção de dez poemas sobre o assunto: “Match de foot-ball” (1916), de Apporelly (1895-1971); “Bungalow das rosas e dos pontapés” (1924), de Oswald de Andrade (1890-1954); “O salto” (1926), de Anna Amélia de Mendonça (1896-1971); “Aos heróis do futebol brasileiro” (1938), de Gilka Machado (1893-1980); “Maracanã” (1959), de Antônio Olinto (1919-2009); “O anjo de pernas tortas” (1962), de Vinicius de Moraes; “A copa: vídeo-tape para Raymundo Nogueira” (1962), de Homero Homem (1921-1991); “A bola de meia” (1965), de Luiz Paiva de Castro (1932); “Aos atletas” (1966), de Carlos Drummond de Andrade; “Soneto do futebol” (s/d), de Artur Eduardo Benevides (1923-2014).
Outros distintos trabalhos líricos são as antologias Pelada poética (2013) e Pelada poética: Copa do Mundo no Brasil (2014), coorganizadas por Mário Alex Rosa, cuja seleção privilegia poetas da cena mineira como Affonso Ávila (1928-2012), Sebastião Nunes (1938), Marcelo Dolabela (1957-2020), Jovino Machado (1963), Renato Negrão (1968) e Ana Martins Marques (1977). Do ponto de vista formal, nota-se que alguns poemas usam mais os princípios advindos da própria linguagem futebolística, apresentando imagens, formas, estruturas e ritmos derivados do campo de jogo.
Por fim, a presença do futebol na literatura se expande ainda mais se considerarmos o que há de literário no teatro, no cinema, na (auto)biografia, na história em quadrinho e na charge, além das canções de compositores da dimensão de Chico Buarque, Moraes Moreira, Jorge Ben, João Bosco e Aldir Blanc.
Temas
Temas Transversais
Para saber mais
Referências
DIAS, Cléber. Literatura, esportes e regionalismo no Brasil: O grande desportista, de Pascoal Toti Filho. Aletria, v. 26, n. 3, p. 69–86, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18701.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Quando é dia de futebol. Rio de Janeiro: Record, 2002.
MATTOS, Cyro de. (Org.). Contos brasileiros de futebol. Brasília: LGE, 2006.
SILVA, Marcelino Rodrigues da.” O mundo do futebol e a crônica esportiva”. FuLiA/UFMG, v. 2, n. 3, p. 86–106, 2018.
Textos traduzidos
SCHLEE, Aldyr Garcia. Cuentos de fútbol. Trad. Ariel Villa, Heber Raviolo, Pablo Rocca. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1995.
COUTINHO, Edilberto. Maracanã, addio. Trad. Vincenzo Barca. Città Repubblica di San Marino: Aiep Editore, 1994.
Autor/a do verbete
Gustavo Cerqueira Guimarães. Ilustração: Rodrigo Rosa.