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O gênero diário na literatura brasileira
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O diário íntimo deve ser sempre considerado no rol de um conjunto maior, os chamados gêneros autobiográficos, que incluem também os livros de memórias, as autobiografias, os romances autobiográficos, as epístolas. Uma das marcas dessas diversas formas textuais é o seu caráter íntimo, subjetivo, confessional, não raro fragilizando os limites entre ficção e realidade no desnudamento de um sujeito que escreve em primeira pessoa e oferece ao leitor uma parcela de suas experiências cotidianas. A marca distintiva do diário é a datação. Isto é, no diário, diferentemente dos livros de memórias, as anotações estão sempre subordinadas a uma data.
A estrutura diarística pode ser incluída entre as diferentes estratégias narrativas, como no caso de Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis (1839-1908), e Diário do farol (2012), de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). O recurso a este tipo de narrativa pode ser pensado em torno do pacto que cria com o leitor, cujo envolvimento é animado pelo relato supostamente autêntico sobre a vida privada de alguém, como se se pudesse ter acesso quase irrestrito à intimidade das personagens.
Mas, em se tratando de diário íntimo, a sua autonomia como gênero literário só foi conquistada após séculos de existência, sendo visto historicamente, ao lado dos demais textos de cunho autobiográfico, como gêneros subalternos ou menores. Mesmo na Europa, onde textos autobiográficos de autores renomados compunham o rol das leituras mais triviais das elites, a crítica se encarregou de promover o rebaixamento sistemático desses gêneros. Os principais detratores acusavam-lhes de serem arremedo de verdades incompletas e anotações frívolas ou distorções históricas que afastam o leitor da essência dos fatos.
Considerando a forte influência europeia na formação cultural brasileira, a intelectualidade nacional herda a visão desconfiada em relação aos textos confessionais. Algumas questões apontadas pela crítica estavam relacionadas ao lugar do diário no conjunto da obra de um escritor e no próprio sistema literário e aos limites entre ficção e realidade, muitas vezes impossíveis de delimitar.
Desse modo, o diário como gênero literário no Brasil só terá de fato visibilidade considerável a partir dos anos de 1940. Antes disso, são poucos os textos que exploram deliberadamente a dimensão pessoal dos seus escritores.
No século XIX, dentre os poucos registros que se tem, merece destaque Como e por que sou romancista, de José de Alencar (1829-1877), escrito em 1873, mas editado apenas em 1893, em que o autor escreve sob a forma de uma carta supostamente produzida para um projeto de Dicionário Bibliográfico sobre a “nossa ainda infante literatura”. Além de Alencar, no ano de 1900, Joaquim Nabuco (1849-1910) publica Minha formação, livro autobiográfico recebido sob muitas críticas e desconfianças pelo seu suposto caráter narcisista.
As primeiras décadas do século XX darão mostras de que o diário, ainda que de maneira tímida, buscava o seu lugar entre os gêneros dignos de leitura e apreciação. Ao lado de textos memorialísticos como os de Humberto de Campos e Medeiros e Albuquerque, é publicado Canudos: diário de uma expedição, de Euclides da Cunha (1866-1909). Considerado o embrião de Os sertões (1902), esse diário foi escrito em 1897, mas publicado somente em 1939, o que ilustra uma espécie de tendência, posto que, diante do lugar vacilante que tais gêneros ainda ocupavam nas letras nacionais, muitos escritos íntimos terão apenas publicação póstuma, como também será o caso de Lima Barreto (1881-1922).
Em 1942, surgem os diários que dão corpo ao livro Minha vida de menina, de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970), cuja escrita perfaz o cotidiano e a formação de uma menina no interior de Minas Gerais, mas amplia-se como retrato das contradições e injustiças sociais vivenciadas especificamente em um país periférico. Minha vida de menina foi traduzido para o inglês por Elizabeth Bishop e, na década de 1990, tornou-se um dos temas basilares de Duas meninas (1997), obra do crítico literário Roberto Schwarz, que observa em Morley questões que ligam sua escrita à personagem machadiana de Dom Casmurro, Capitu. Ainda na década de 1940, outros textos de cunho autobiográfico entram em cena, como Infância (1945), de Graciliano Ramos, e Segredos da infância (1949), de Augusto Meyer.
A partir da metade do século XX é possível afirmar que há, no país, uma maior abertura para os gêneros autobiográficos, que contará com textos de peso como Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira, Um homem sem profissão: memórias e confissões sob as ordens de mamãe, de Oswald de Andrade, ambas de 1954, e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos. Esta abertura pode ser explicada pela relativa aceitação que tais obras vão conquistando pouco a pouco entre o público leitor, além de se observar uma leitura crítica mais ampla por parte da Academia e o crescimento, ainda que tímido, dos índices de alfabetização do país.
Em se tratando de diário, chamam a atenção: o Diário secreto (1954), de Humberto de Campos (1886-1934), livro que encerra uma longa trajetória memorialística do seu autor, e Diário íntimo e Diário de hospício, ambos de 1956, de Lima Barreto. Os diários de Lima Barreto foram compilados e organizados por sua irmã Evangelina Barreto e por Francisco de Assis Borba. Somados, os dois volumes cobrem um período que vai dos anos 1900 a 1921, nos quais se veem anotações diversas, fragmentos descontínuos, esboços de romances e outros projetos literários, que reforçam a força criativa e a destreza estética do escritor ao tensionar os limites entre realidade e ficção, alçando seus diários à condição de obra de primeira grandeza no conjunto de sua produção.
Mas é na década de 1960 que o diário ocupará lugar de destaque no cenário da vida literária brasileira. Em agosto de 1960 surge um dos diários mais significativos já publicados entre nós e que constituirá uma espécie de divisor de águas, o Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). As anotações de uma catadora de papel semiletrada, moradora da favela do Canindé em São Paulo, chamam a atenção do jornalista Audálio Dantas pela crueza da verdade que continham, mas também pelo tom poético com que a dureza do cotidiano é revelada. A denúncia da vida precária, o retrato da violência, do racismo e da fome convivem lado a lado com a preocupação com a forma estética e com a beleza nos escritos de Carolina. O livro tornou-se rapidamente um sucesso editorial e já foi traduzido em treze idiomas e publicado em mais de quarenta países.
No ano seguinte, surge o Diário I, do escritor mineiro Lúcio Cardoso. O já consagrado autor da Crônica da casa assassinada traz ao público os seus escritos íntimos como parte de um projeto que teria continuidade em vários outros volumes. O projeto, no entanto, não logrará êxito e, somente na década de 1970, os demais diários seriam publicados na edição Diário Completo da editora José Olympio. Os escritos pessoais de Lúcio Cardoso, como os de Carolina Maria de Jesus, dão mostras de que o diário pode romper com o lugar secundário relegado historicamente. Lúcio Cardoso registra banalidades cotidianas, mas também reflete sobre o papel do intelectual, sobre o contexto político, discute sobre arte brasileira e internacional, mas também faz de várias entradas do seu diário um exercício literário, marcado pelo lirismo e pelas inquietações existenciais que marcaram toda a sua obra.
Dignos de nota são também os diários de Walmir Ayala (1933-1991). O primeiro é publicado em 1962, Difícil é o reino: diário I. No ano seguinte publica O visível amor: diário II, e, em 1976, o último volume intitulado A fuga do arcanjo: diário III. Ayala chega a afirmar deliberadamente que a sua missão de poeta inclui também o diário, assumindo a escrita íntima como parte do seu projeto estético. Dentre as várias entradas, em que as impressões do cotidiano dividem espaço com as confissões de intelectual, algumas são apresentadas em forma de verso, atestando o hibridismo que o gênero pode abrigar.
Na década de 1970, além do já mencionado Diário Completo, de Lúcio Cardoso, vem a público Na ronda do tempo (1971), diário de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), e Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescente e primeira mocidade (1975), de Gilberto Freyre. Entusiasta dos gêneros autobiográficos, em especial do diário, Freyre oferece ao leitor as páginas de seus diários que teriam sido cultivadas entre 1915 e 1930, nas quais trata, dentre outros assuntos, dos seus desejos e descobertas sexuais.
Nas décadas seguintes, há um crescimento exponencial dos textos de caráter autobiográfico, motivado pela difusão, no Brasil, do pensamento teórico-crítico de Georges Gusdorf, Philippe Lejeune e Michel Foucault, pela expansão dos Estudos Culturais, pelo fortalecimento de várias correntes ligadas à crítica genética e pela crescente espetacularização em torno vida privada, fenômeno largamente articulado à expansão da internet. Memórias como Navegações de cabotagem (1992), de Jorge Amado (1912-2001) ou os diários de Harry Laus (1922-1992), publicados em edição crítico-genética em 2002, se somam a uma gama de romances, contos, poemas que, deliberadamente ou não, exploram os limites da autobiografia e forçosamente levam a crítica à revisão histórica de tais gêneros.
Temas
Temas Transversais
Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BRANDÃO, Ruth Silviano. A vida escrita. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
CANDIDO, Antonio. Poesia e Ficção na Autobiografia. In.: A Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 51-69.
FONSECA, Edson Nery da. A autobiografia no Brasil. In: Anais do III Encontro Inter- regional de Cientistas Sociais do Brasil. Recife: MEC/IJNPS Edições: 1978. p.126-171.
SOUSA, G. H. P. de. Carolina Maria de Jesus: o estranho diário de uma escritora vira-lata. São Paulo: Editora Horizonte, 2012.
Textos traduzidos
BISHOP, Elizabeth. The diary of Helena Morley. New York: Noonday Press/Farrar, Straus and Giroux, 1995.
JESUS, Carolina Maria de. Le dépotoir. Traduction française par Violante do Canto, Paris: Stock, 1962.
CARELLI, Mario. Ecrits intimes de Lúcio Cardoso. In.: Caravelle; cahiers du monde hispanique et luso-brésilien. Toulouse, 1985. p. 63-78.
Autor/a do verbete
Rafael Batista de Sousa. Ilustração: Rodrigo Rosa.